O homem baixo, barbudo e suado se aproximava da fila dos teatros ou percorria as mesas do restaurante Gigetto para convencer as pessoas a comprar seus livros. Entre as décadas de 1960 e 1990, era difícil não ser abordado por ele. Vendia peças, crônicas e romances impressos em gráficas baratas. Era visto como mais um dos chatos da galeria de personagens noturnos que até hoje povoam o centro de São Paulo. “Vendo muito porque já fui camelô”, dizia. “Sei vender.” Sobrevivia assim.

ESTREIA Plínio Marcos e Ademir Rocha na primeira montagem de “Dois Perdidos numa Noite Suja”, no teatro de Arena, SP, em 1966 (Crédito:Derly Marques)

Hoje, o camelô, funileiro, estivador e palhaço santista Plínio Marcos de Barros (1935-1999) está morto e consagrado como um clássico do teatro brasileiro e dramaturgo maior dos anos 1960. Suas “Obras Teatrais” acabam de sair pela Funarte, com organização e estudo crítico de Alcir Pécora, professor de Teoria Literária da Universidade de Campinas. São seis volumes com 29 peças, 10 inéditas, que formam um legado dramático só comparável pelos especialistas ao do carioca Nelson Rodrigues.

A edição é um marco cultural que realiza um projeto incompleto de Plínio. Em 1997, ele cedeu à Funarte, os direitos de publicação do conjunto de peças por dez anos. Depois da morte de Plínio, o contato com a instituição foi retomado pelos filhos, Ricardo Barros e Leo Lama, e a ex-mulher, a atriz Walderez de Barros, herdeiros de dezenas de caixas de textos, muitos deles inéditos. “Fui copista de Plínio”, conta Walderez, que viveu com ele de 1962 a 1985. “Era anárquico e escrevia à mão, com uma caneta esferográfica, geralmente de cor azul.Eu datilografava e corrigia os poucos erros. Os textos já surgiam como peças de teatro prontas.”

Escândalo

Plínio dizia não escrever ficção, mas reportagens, e criou para si o personagem do artista marginal. Mas seu desejo íntimo era ser canonizado como escritor — e o foi, após uma lenta deglutição de crítica e público. Suas peças, entre elas as famosas “Dois Perdidos numa Noite Suja” (1966) e “Navalha na Carne” (1967), chamaram público pelas cenas de violência e sexo ambientadas no submundo e pela abundância de palavrões e ataques à ditadura, ao consumismo e à hipocrisia. “Ele relatou tudo o que viveu na zona do meretrício de Santos e no centro de São Paulo”, diz Walderez.

Apesar de Plínio não ter pertencido a movimentos de esquerda, foi adotado pelo Partido Comunista por ser o autor mais censurado da época e simbolizar a resistência ao regime. Peças como “Barrela” (1958) sofreram proibição por mais de 20 anos. “Fui perseguido pela censura, mas fiz por merecer”, ironizou. Foi preso pelos militares menos por suas ideias políticas que pela obscenidade dos espetáculos. “Não faço teatro para o povo, mas em favor do povo. Faço teatro para incomodar
os que estão sossegados”, argumentava.

OBRA As 29 peças de Plínio Marcos saem em seis volumes

Incomodou tanto que sua canonização se dá “à brasileira”, como diz Pécora: “É uma forma de elogiar a obra para confiná-la a um gueto e esquecê-la”. O organizador lembra que, desde o início da carreira, as peças de Plínio foram celebradas por teatrólogos renomados, como Sábato Magaldi e Anatol Rosenfeld. Segundo Pécora, a publicação das obras teatrais permite avaliar em perspectiva a obra e a “estética bruta” de Plínio. “Aquilo que era recebido como escandaloso e ‘coisa de marginal’ nos anos 60 hoje invadiu a vida dos brasileiros”, afirma.

“Está nas casas, nas novelas de TV e no vocabulário socialmente aceito.” Plínio Marcos pode ser descrito como um precursor, embora não se enxergasse dessa forma. “Minhas obras são atuais porque o país não evoluiu”, disse. Caso tivesse sobrevivido ao AVC que o matou aos 64 anos, estaria com 82 e ainda vendendo livros noite adentro. “Como era camelô, convencia as pessoas a comprar seus livros e elas diziam que faziam isso para ajudá-lo”, diz Ricardo Barros. “Na realidade, ele é que ajudava as pessoas a abrir os olhos para a realidade que as cercava.”

Em 1988, ele vendia os livros que editava nas ruas de São Paulo Crédito: Graciela Magnon