Leonard Cohen foi um pai relapso, teve uma série de relacionamentos fracassados, nunca cuidou da saúde e morreu sem dinheiro, apesar da bem-sucedida carreira artística. Para ele, havia uma única atividade importante na vida: escrever. Poemas, romances, letras de música, não importa. A vocação que o mantinha vivo e que alimentava sua existência era o ato de preencher cadernos e mais cadernos com palavras – “enegrecer o papel”, como ele dizia. Preencheu centenas, talvez milhares deles, a ponto de alugar depósitos para armazenar as caixas que os guardavam. Boa parte desse material já estava conhecido do público, por meio de livros ou de letras de músicas, entre elas I’m Your Man e Famous Blue Coat. Havia uma parte desse tesouro, no entanto, que Cohen guardou para o momento final, uma espécie de “livro do adeus”.

“Nos últimos meses de vida, seu único objetivo era terminar essa obra derradeira, feita de poemas inéditos e trechos dos cadernos”, afirma Robert Kory, seu empresário, na introdução de A Chama. O título veio do filho Adam Cohen, produtor de seu último álbum, You Want it Darker, de 2016. Ele lembra que o pai chegou ao fim da vida, em 7 de novembro desse mesmo ano, obcecado pela força do fogo, elemento que usava como metáfora para elogiar “a empolgação de uma ideia que estava em chamas”.

O autor deixou instruções claras aos editores. Queria que a obra fosse dividida em três partes: a primeira é composta por 63 poemas inéditos, selecionados por ele em meio aos seus valiosos cadernos. Costumava trabalhar por anos, às vezes décadas em um mesmo texto, buscando a perfeição – os 63 textos do livro foram consideradas obras finalizadas. A segunda parte contém poemas que se tornaram letras de canções – todas as suas músicas começaram como textos. Nesse sentido, Cohen se assemelha a Bob Dylan, roqueiro agraciado com o Nobel de Literatura em 2016. Assim como o colega, suas canções também são veículos para a poesia. No caso de Cohen isso é ainda mais radical: além das dezenas de álbuns, publicou treze livros de poesia e dois romances, os elogiados The Favorite Game (1963) e Beautiful Losers (1966). A Chama termina com trechos inéditos de seus cadernos escolhidos pelo amigo Robert Faggen, professor de literatura do Claremont McKenna College, na Califórnia. Há ainda uma série de desenhos, autorretratos bem-humorados sempre acompanhados de pequenas reflexões.

Leonard Cohen sempre se considerou um escritor. Em Montreal, no Canadá, onde nasceu, passou a adolescência entre os livros de seus poetas-heróis: o espanhol Federico García Lorca, o irlandês William Butler Yeats e o americano Walt Whitman. Seu primeiro livro, Let Us Compare Mythologies (1956) foi publicado quando ele tinha 18 anos. Viveu o sexo, as drogas e outros excessos da juventude em viagens pela Europa, que incluíram uma longa estadia em Hydra, na Grécia. Na ilha paradisíaca teve um romance com o grande amor de sua vida, a norueguesa Marianne Jensen – relacionamento lindamente retratado no documentário Leonard & Marianne: Words of Love, de Nick Broomfield.

Decepcionado com o lado financeiro da atividade literária, mudou-se para Nova York em 1966 para tentar a carreira como compositor. Passou a morar no lendário Chelsea Hotel, lugar frequentado pelos grandes nomes da contracultura. Lá conheceu Albert Grossman, empresário de Bob Dylan, que o apresentou à cantora Judy Collins. Charmoso e sedutor, Cohen a convenceu a gravar uma de suas letras, Suzanne, que se tornou grande sucesso em todo o mundo. Começava ali a carreira musical que lhe traria fama e fortuna ao longo de décadas. Seu maior sucesso, Hallelujah, veio em 1984. Gravada até hoje por mais de 200 intérpretes, é um hino à verdadeira religião de Leonard Cohen: a arte da escrita.