Semana sim, outra também, o presidente Jair Bolsonaro reitera, por meio de suas atitudes, que era mera máscara o discurso liberal adotado ao longo da campanha ao Palácio do Planalto. Ou melhor, meia máscara: Bolsonaro defendeu um programa conservador na área dos costumes, e tem agora, no dia a dia, demonstrado que essa é mesmo uma porção verdadeira de sua face, pois no retrógrado conservadorismo referente ao comportamento social ele vem caprichando — é a cara dele. Já a parte programática que pregava o liberalismo na economia, esse lado estava camuflado. Bolsonaro mostra cada vez mais a sua vocação para o intervencionismo e intromete-se em assuntos para os quais, pela cartilha liberal, o Estado não deve ser chamado a participar.

“Tenho certeza de que as nossas orações tocarão seu coração”
Jair Bolsonaro, do presidente para Rubens Novaes, presidente do BB (Crédito: Alan Santos/PR)

O disfarce caiu

Uma semana bolsonarista puxa outra, uma encrenca atrai outra, um traço autoritário engata em outro. Assim, nos últimos dias, ainda estava à tona um recente episódio que aponta de forma exemplar e emblemática para o meio disfarce do qual se falou. Ou, resumindo, expõe com clareza que o liberal virou intervencionista. No tiroteio que se tornou a gestão, o alvo da vez foi o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz. Por que? Porque Bolsonaro mandara tirar do ar uma nova propaganda do Banco do Brasil que enfatizava a diversidade racial e social (leia box). Então, vamos lá: censurar a propaganda é o intervencionismo que não cabe a quem se diz liberal, como o presidente se autoproclama, e a justificativa para tal ato exibiu todo o conservadorismo que ele professa nos costumes: “a massa quer respeito à família”. Finalmente, sobrou disparo contra Santos Cruz porque o secretário declarou justamente o que tinha de declarar: “intervenções são indevidas”. Está explicado, assim, o truque bolsonarista. O certo, enfim, é que a máscara caiu.

Os princípios do liberalismo econômico remontam ao século XVI — digamos que, de fato, vêm de lá os seus primeiros genes, numa reação ao mercantilismo que já não funcionava bem para as necessidades de um incipiente capitalismo. Foi no final do século XVIII, no entanto, que o liberalismo ganhou força, contrapondo-se claramente à intervenção do Estado na economia. É nessa época que se destaca como um de seus grandes formuladores François Quesnay, que entrou para a galeria da história como mestre de economia sem ao menos ser economista. Na verdade, Quesnay era médico, e pelo jeito bom profissional, porque cobria-se de toda a confiança do rei Luis XV. É ainda no século XVIII que o liberalismo vai ter seus contornos fixados e se tornará a teoria mais plausível na economia moderna. Deve-se isso ao economista britânico Adam Smith (autor de dois grandes clássicos, “A Riqueza das Nações” e “Teoria dos Sentimentos Morais”), que exercerá a derradeira influência para o sepultamento dos cânones mercantilistas.

No recorte específico do governo Bolsonaro, o não intervencionismo do Estado na economia, e, ao mesmo tempo, o seu dever ético de promover o bem-estar social é seguido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, legítimo filho daquilo que passou a se chamar, a partir de 1950, Escola de Chicago — grupo de economistas seguidores dos teóricos George Stigler e Milton Friedman, cujas idéias na Universidade de Chicago se ligam à tese neoclássica liberal, trombando de frente e definitivamente com o keynesianismo.

O problema é que, pelo seu comportamento e impulso de tudo controlar, Bolsonaro, muitas vezes, constrangeu e costurou saia justa para o seu próprio ministro, que teve na ex-dama de ferro britânica, Margareth Thatcher, uma de suas grandes entusiastas. Assim, o intervencionista em pele de liberal virou sinônimo de risco para o mercado de capitais e de fantasma para investidores. Na semana passada, na Agrishow, tradicional feira do agronegócio realizada na cidade paulista de Ribeirão Preto, Bolsonaro discursou aos agricultores. Em meio a sua fala dirigiu-se repentinamente ao presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes. E chutou: “eu apenas apelo, Rubem, me permite fazer uma brincadeira aqui. Apenas apelo para seu coração e patriotismo, que esses juros, tendo em vista que você parece ser um cristão de verdade, caiam um pouquinho mais. Tenho certeza de que nossas orações tocarão seu coração”.

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Tocaram sim, não o coração, mas as ações do Banco do Brasil que despencaram. E despencaram as do Bradesco, do Itaú e do Santander. Depois as coisas se normalizaram, mas a taquicardia no mercado é plenamente justificável. Digamos que mercado escaldado não tem medo de água fria mas treme de pavor de Bolsonaro imiscuir-se onde não deve. Há poucas semanas ele colocou o dedo na Petrobras quando a estatal cogitou majorar o preço do óleo diesel. Telefonou para o presidente da empresa, Roberto Castello Branco, cobrando explicações. Diante das críticas, o liberal de fachada chamou o conservador autoritário — ou seja, ele mesmo. E argumentou na linha de que poderia, sim, fazer a intervenção, uma vez que foi ele, o presidente da República, que nomeou o da Petrobras. Esse é um dos grandes problemas. Bolsonaro foi eleito presidente da República, gosta de falar que é presidente da República, mas se porta como um síndico de prédio de três andares que espia e controla tudo e todos. A sua intromissão foi simplesmente catastrófica: as ações viraram mico e, num único dia, a empresa perdeu R$ 32,4 bilhões.

As melancias na carroça

Ao falar como na Agrishow, Jair Bolsonaro mostra que não aprendeu nada com o desastre que provocara na maior estatal do País, e isso é motivo real de preocupação (e de fuga) dos investidores. Em primeiro lugar porque o seu liberalismo se revela balela de palanque. Em segundo, porque ninguém, nem mesmo o “síndico”, pode intervir no âmbito mercadológico de uma empresa estatal, e isso por força de lei. Finalmente, porque Bolsonaro parece não compreender sequer a tradução mais popular do liberalismo, em uma cediça frase do nosso folclore: “no andar da carroça as melancias se ajeitam”. Ou seja: livre, o mercado compete, se ajeita e se desenvolve. Pois é, só que para isso a carroça tem de andar, e a carroça Brasil não apenas está parada, como o veículo desgovernado está descendo de ré a ladeira.

Jair Bolsonaro, quem diria, vive a repetir o método político e econômico intervencionista das gestões petistas, sobretudo a da ex-presidente Dilma Rousseff, que levou o País à profunda recessão, ajudou a quebrar a Petrobras e causou sérios danos a setores como os de energia e telefonia. A rigor, ninguém é obrigado a seguir o liberalismo e colocá-lo em prática, ainda que seja ele, indubitavelmente, o melhor antídoto a regimes totalitários como são os comunistas e tenha consolidado como forma ideal de governo a democracia e a social democracia. O problema no condomínio Brasil é outro. E grave: só sairemos do caos se o Estado não intervier no mercado. Mas, olhando as tais melancias, o que vemos é um presidente intervencionista.

Diversidade patrulhada

PUBLICIDADE Cena do vídeo do BB: o objetivo era apenas o de atrair clientes jovens

Jair Bolsonaro lembra em alguns de seus atos de governo o ex-presidente Jânio Quadros. Como aquele que renunciou e jogou o País numa aventura política, também Bolsonaro atua às vezes como se fosse um delegado de costumes ou um Catão a ocupar as tribunas de Roma Antiga. Foi assim, com a alma profundamente conservadora, com moralismo descabido, temperamento autoritário e falando de valores familiares de forma completamente descontextualizada, que o presidente ordenou que fosse retirado do ar um vídeo publicitário do Banco do Brasil, que buscava atrair clientes jovens por meio da diversidade. A propaganda exibia atores e atrizes tatuados, brancos e negros, com cabelos longos ou carecas, dançando e plenos de alegria. A publicidade valorizava essencialmente a democracia social. Bolsonaro, ao contrário, preferiu valorizar o abominável patrulhamento que leva à censura. Ele declarou que o dinheiro público não podia patrocinar coisas daquele tipo. Presidente, sinceramente, que tipo é esse?


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