Cercada de excessos, radicalismos e interesses políticos inconfessáveis, a greve dos caminhoneiros teve em seu nascedouro razões legítimas. E elas estão fortemente ligadas a uma situação que, para muitos setores, se tornou insustentável: a altíssima carga tributária paga pelos brasileiros e pelo setor produtivo, além da imensa e onerosa confusão do sistema de impostos do País. “Nós vivemos num manicômio tributário. Se não dermos um jeito nisso, vamos quebrar. Partiremos para o caos”, alerta o deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), relator de um projeto de reforma tributária que tramita na Câmara. Se há uma boa notícia, em meio a esse pavoroso quadro, é que o setor produtivo começou a se insurgir fortemente contra ele. E a desorganizada e radical greve dos caminhoneiros se tornou parte integrante de um verdadeiro levante tributário, que começa a mover setores da sociedade civil. “A revolução americana começou com o lema “no taxation without representantion”, que significa: não há tributação sem representação. A revolta dos caminhoneiros é o embrião de rebelião tributária. É uma insubordinação que começa quando a população não aceita mais a legitimidade do governo para tributá-la”, afirmou o economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca.

Bandeiras

No curso da insurreição tributária pelo movimento dos caminhoneiros, a Associação Comercial de Porto Alegre aproveitou para desfraldar sua bandeira, ao afirmar que “a sociedade não suporta mais pagar” a conta dos impostos altos. “A média Brasil da carga tributária dos impostos nos combustíveis chega próxima da metade dos preços, afetando todos os setores da economia.

Os empresários em geral não suportam mais tantos impostos diretos e indiretos, sem o respectivo retorno. Não podemos ficar aplaudindo a ineficiência do governo federal, que continua gastando mais do que arrecada”, reclama a Associação. Na mesma linha, manifestou-se a Federação das Câmaras de Dirigentes Lojistas. “Entre impostos, taxas, contribuições e empréstimos compulsórios, o Brasil chega a um número de mais de 60 tributos existentes. Se é difícil até mesmo decorar o nome de toda essa carga tributária, imagine-se a dificuldade para pagar”, protesta. “O sistema tributário brasileiro é oneroso, complexo e envolve uma burocracia excessiva, o que gera altos custos para se pagar impostos e insegurança jurídica”, considera a Confederação Nacional da Indústria (CNI). “Isso reduz a competitividade das empresas e desestimula investimentos no país”, continua. “Começa a se construir um consenso de que precisamos mudar essa loucura tributária”, confia Hauly.

No País, ganham força movimentos cada vez mais atuantes em prol da redução drástica de impostos. Entre eles, o Livres, ex-corrente do PSL, que tem entre seus integrantes a economista Elena Landau, responsável pelas privatizações durante o governo Fernando Henrique Cardoso. De todos os principais movimentos de renovação política, o Livres é aquele que mais se alinha ao discurso liberal. O presidente estadual do Livres no Amazonas, Julio Lins, lidera uma iniciativa na tentativa de pressionar o governador Amazonino Mendes a reduzir o ICMS sobre combustíveis de 25% para a alíquota geral de 18%. “O ICMS é responsável por um terço do preço final da gasolina nos postos Estado. Mas caso o governador encaminhe o projeto e os deputados votarem a favor, poderemos ter uma redução de pelo menos trinta centavos no valor do litro da gasolina, além da redução preço da passagem de ônibus em razão do barateamento do óleo diesel. Do jeito que está não pode continuar”, disse.

Consumo despenca

Para o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), o auditor Kleber Cabral, aos poucos a população também começa a compreender que parte expressiva (55%) de toda a tributação no País corresponde ao consumo. O efeito provocado pela carga tributária nos bens de consumo acaba também refletindo em outros grupos da sociedade, como os empresários. Com o alto preço dos produtos, como alimentos, combustível e serviços, o poder de compra do trabalhador diminui e o consumo despenca. Por isso, o que mais se vê são empresas de portas fechadas. Esse impacto é sentido por toda sorte de setores como o de distribuidoras de bebidas. É o que revela o presidente do Sindicato de Comércio Atacadista de Bebidas do Distrito Federal (Scaab), Erico Cagali. Segundo ele, no ano passado, o comércio de bebidas na capital federal, que compreende cerveja, refrigerante e água, caiu 6%. “Infelizmente, as vendas vêm diminuindo significativamente”, lamentou.

Grandes empresários sofrem e acabam inviabilizados pela alta carga de impostos e pela confusão tributária. Francisco José Santos é um exemplo. Ele foi dono da Viação Anapolina, uma empresa com mais de 50 anos de existência que tinha 600 ônibus circulando por seis cidades que fazem divisa com Brasília: Lago Azul, Novo Gama, Pedregal, Valparaíso, Cidade Ocidental e Luziânia. Chegou a ter três mil funcionários. Em dezembro de 2016, decretou falência. “Nasci dentro da empresa e todos os meus 54 anos de vida foram passados lá”, lamenta. O motivo da falência de Francisco se resume a uma palavra: impostos. “Pagávamos R$ 2 milhões só de tributos por ano”, relata ele. O preço do óleo diesel foi outro fator. Um ônibus roda, no máximo, três quilômetros com cada litro.

No ano passado, outro empresário brasiliense Walison Medeiros, 37 anos, decidiu encerrar as atividades de sua empresa. O motivo foi o mesmo: não suportava mais o peso dos impostos. Ele revendia na capital federal toneladas de madeiras nobres usadas na construção civil. Só de imposto, deixava quase 40% do que arrecadava. “Não compensava mais. Além do risco de ser assaltado e ter a carga roubada, o lucro ainda era pouco”, avaliou. Segundo ele, um caminhão com 27m3 de madeira, que perfaz um total de 45 mil toneladas, custava às empresas compradoras de Brasília R$ 100 mil. Depois de suprimir os impostos, sobrava para ele apenas R$ 30 mil. “Além de pagar 17% de impostos, como o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), daqui, ainda tinha os tributos do local de origem”, afirmou. Ou seja, ele era obrigado a pagar impostos no DF e nos estados onde recolhia a madeira, além dos impostos federais. A carga vinha do Pará e Acre. A tributação já era descontada no momento em que ele apanhava a mercadoria. O sistema tributário também o impediu de crescer. Como sua empresa integrava o regime simples nacional, ampliá-la significava aumentar a mordida do leão. “Eu só podia vender R$ 340 mil por mês. Se vendesse mais, minha alíquota subiria”, explicou.

De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), existem hoje no País nada menos que 48 tributos federais. Cinco estaduais e dez municipais. O ano não chegou ainda à metade e o brasileiro já pagou R$ 879 bilhões de imposto. “Temos uma carga tributária muito alta e um retorno muito baixo à sociedade. O Brasil arrecada mais de R$ 2 trilhões por ano, mas a aplicação desses recursos é muito ruim”, disse a ISTOÉ o presidente do IBPT, João Elói Olenike. A reforma tributária levada pelo deputado Hauly é parte dessa busca de solução. Ela vem patinando no Congresso, como aconteceu com tentativas anteriores. Toda vez que se fala em reforma tributária, os governos temem perda de arrecadação e não deixam que as propostas avancem. Depois do movimento dos caminhoneiros, a reforma ressuscitou. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), procurou Hauly e garantiu prioridade à proposta, pedindo a ele que a retome. Na terça-feira 29, o deputado paranaense reuniu sua equipe, que conta com técnicos da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Atlântico, para um dia de reuniões na Câmara. Para evitar problemas com o governo, Hauly instituiu um pacto: manterá a alta alíquota atual de impostos, em torno de 35% do Produto Interno Bruto (PIB). Mas sua proposta propõe uma forte simplificação do sistema tributário. “E isso já vai gerar uma economia de bilhões para o país”, afirma ele. “No geral, a alta carga e a confusão tributária inviabilizam principalmente as menores empresas, pois as grandes empresas têm estrutura para lidar com isso. Sente mais quem tem menos recursos para aplicar em assessorias, consultorias tributárias, etc. Mas o peso é para todos”, explica Olenike. A proposta de Hauly propõe extinguir pelo menos dez impostos federais, criando um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), semelhante ao modelo utilizado na maioria dos países da Europa. O consumidor compra um produto, e dele é automaticamente abatido o valor do imposto. A equipe de Hauly vem desenvolvendo um modelo a partir do qual o desconto do imposto já seja feito eletronicamente, em cada compra feita com cartão de crédito ou de débito, ou no sistema bancário. “O valor do imposto já pode ser debitado automaticamente e recolhido para uma conta da Receita. Não vai precisar o empresário recolher o valor todo e pagar depois o imposto. Isso reduz sonegação, elisão e custo para as empresas”, explica ele. Tal modelo só não seria possível nas transações em dinheiro vivo, cada vez menores. Para Olenike, simplificar o sistema é importante. Mas o Brasil precisa também em algum momento atacar a carga tributária. “Reduzir a carga tributária traria mais crescimento ao país, pois resolveria, por exemplo, problemas de inadimplência e sonegação. Alíquotas menores levariam mais pessoas a pagarem impostos corretamente”, defende.

VENCIDO O empresário Walison Medeiros não suportou o peso dos impostos (Crédito:Divulgação)

A diretora-geral da organização de apoio ao empreendedorismo Endeavor Brasil, Camilla Junqueira faz uma analogia interessante na hora de discorrer sobre o sistema tributário brasileiro. Segundo ela, é como se o empreendedor brasileiro tivesse que correr uma maratona com um elástico amarrado à cintura. Somente a legislação do ICMS foi alterada 558 vezes nos últimos quatro anos em todos os estados. É preciso mudar drasticamente esse quadro. Como e quando, porém, ainda são perguntas não respondidas. O Brasil parece viver o drama de conhecer seus problemas, mas ser incapaz de resolvê-los.