De uma coisa não se pode acusar Jair Bolsonaro: de ser imprevisível. Desde que tomou posse, ele tem sido sistemático em atacar as instituições democráticas. Logo deixou claro sua linha de ação: não tinha interesse em dialogar com os governadores, enxergava no STF um obstáculo às suas pretensões e não tinha interesse em nenhuma articulação com o Congresso. Trinta e dois meses depois, após superar dois terços do mandato, mantém exatamente a mesma atitude. Mas, com a economia naufragando, a popularidade despencando e o apoio político desaparecendo, não resta outra alternativa a não ser partir para o tudo ou nada. E esse momento virou a manifestação de apoiadores no Sete de Setembro.

“DENÚNCIA SEM FUNDAMENTO” A OAB divulgou um parecer afirmando que o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, apresentado por Bolsonaro, não tem fundamento jurídico
REAÇÃO Governadores se reuniram no dia 25 e discutiram o risco de insubordinação nas PMs (Crédito:RENATO ALVES)

Chamada para exigir o voto impresso nas eleições e o impeachment dos ministros do STF Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, ela se transformou na prática em um ensaio geral para o golpe. A data foi estabelecida pelo próprio presidente para dar a virada contra os limites impostos pela democracia. As redes bolsonaristas estão mobilizadas para um ato em larga escala com a presença de policiais militares, caminhoneiros, evangélicos e ruralistas. O que o presidente não imaginava é que sua insistência na ruptura institucional poderia unir o País contra as suas pretensões autoritárias. É o que está acontecendo.

O passo inicial, mais uma vez, coube ao STF. O ministro Alexandre de Moraes proibiu dez líderes que organizavam o ato de Sete de Setembro de se aproximar, no raio de um quilômetro, da Praça dos Três Poderes, de integrantes do STF e de senadores. Fez isso na mesma ação, pedida pela PGR, que mirou as ameaças feitas pelo deputado Ottoni de Paula (PSC) e pelo cantor Sérgio Reis. Há razões para essa ação firme. Setores bolsonaristas estão divulgando ameaças que incluem uma paralisação “total de caminhoneiros” e acampamento em Brasília. Com mapas detalhados da capital, grupos como a Coalização Direita Conservadora pedem contribuição em dinheiro e recebem inscrições. Até ameaças de invasão do Congresso, do STF e da embaixada da China circularam. Em sinal de desafio, o presidente da Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), Antônio Galvan, que foi alvo da PF, chegou à sede da corporação em Sinop (MT) cercado de tratores.

COOPTAÇÃO Bolsonaro fala a cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras (Crédito:MARFCOS CORRÊA)

Há várias iniciativas nesse sentido para encorpar o ato de Sete de Setembro. As que mais preocupam envolvem policiais militares, cooptados por Bolsonaro desde o início do mandato. É o caso do coronel reformado da PM paulista Ricardo Araújo, que Bolsonaro nomeou como presidente da Ceagesp, entreposto na capital de São Paulo. Ele postou um vídeo usando uma camisa com a identificação da Rota, batalhão que já comandou, conclamando os policiais a participarem do ato para “impedir a entrada do comunismo no Brasil”. Mais grave, o chefe do comando de sete batalhões da PM no interior de São Paulo, Aleksander Lacerda, atacou nas redes sociais o presidente do Senado e o próprio governador João Doria. Há mobilizações de policiais em pelo menos outros cinco estados: Rio, Santa Catarina, Espírito Santo, Ceará e Paraíba. Ainda é incerto qual o efeito que essa mobilização vai produzir. O presidente da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme), o coronel da reserva da PM catarinense Marlon Teza, disse que “não vê nas PMs nenhuma hipótese de insubordinação ou ruptura além de atitudes isoladas”. Mas policiais militares do interior paulista como Campinas, Presidente Prudente, Ribeirão Preto e Bauru se organizam para comparecer à manifestação. Um dos líderes da ação é o deputado Coronel Tadeu (PSL-SP), que afirma já haver pelo menos 50 ônibus alugados pela categoria. Esses militantes das PMs prometem se apresentar à paisana e não carregar armas, mas o risco é que incidentes isolados degenerem em conflitos maiores, criem a sensação de insegurança e sirvam de pretexto para o discurso de “restabelecer a ordem”. É o sonho de Bolsonaro, semear a convulsão social e usá-la como pretexto para usar as Forças Armadas a favor de um golpe branco. Os estados reagem a essa ameaça. O risco de rebelião nas PMs foi discutido por 25 governadores que se reuniram na segunda-feira, 25. Doria, que liderou uma reação firme ao afastar o coronel Aleksander assim que soube do ato de insubordinação, alertou os colegas. Ele apostava em um documento comum condenando o presidente pelas ameaças ao STF e ao TSE. Mas a proposta foi vetada pelos governadores bolsonaristas Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (DEM-GO) e Carlos Moisés (PSL-SC). No seu lugar, foi aprovado um convite aos chefes dos Poderes para encontros com o objetivo de diminuir a instabilidade política. Foi uma reação comedida, mas que aponta a insatisfação contra a escalada do presidente. Um grupo de 14 governadores já havia divulgado, dias antes, um documento de solidariedade ao STF “em face de constantes ameaças e agressões” à Corte.

Enquanto os governadores tentavam uma nova pacificação, Bolsonaro rejeitava o diálogo. Voltou a culpar os gestores pelas consequências da pandemia e pela crise econômica. Também compartilhou a imagem de Galvan, presidente da Aprosoja Brasil, chegando para prestar depoimento à PF de trator. Além de não recriminar os excessos e ameaças dos organizadores do Sete de Setembro, avisou que vai participar em Brasília e na avenida Paulista, em São Paulo. Após a decisão judicial de desmonetizar os sites pró-golpe que organizavam o ato, voltou a atacar a Justiça por “esticar a corda”. “Não está arrebentando, arrebentou “, disse sobre a tensão com o TSE e o STF. Esses arroubos causam preocupação, já que o presidente declarou que “não pretende sair das quatro linhas da Constituição”, mas ao mesmo tempo avisa que “o momento está chegando”. Além da balela de usar a interpretação excêntrica do artigo 142 da Constituição, que transformaria o Exército em Poder moderador sob as ordens do chefe do Executivo, o governo também avalia nos bastidores usar a Força Nacional de Segurança à revelia dos governadores, o que também já foi refutado pelo STF. Ou seja, ao mesmo tempo em que estimula escaramuças nas ruas e a insubordinação das polícias contra os governadores, o presidente também conta usar a Força Nacional para “o controle da ordem e da paz”. É preciso desenhar a estratégia que Bolsonaro segue para a ruptura?

Não há nenhuma surpresa nessa reação do mandatário. Suas investidas são metódicas e fazem parte da tática de morde e assopra contra as instituições. A diferença é que ele já começa a estimular o “ensaio geral” do golpe porque está ficando sem opções para continuar no poder além de 2022. Por isso, está unindo diversos setores contra ele. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou um documento afirmando que o pedido de impeachment de Alexandre de Moraes não tinha fundamento jurídico. O parecer concluiu que pela “inexistência de crimes de responsabilidade imputáveis ao ministro”. A lei do impeachment faculta a qualquer cidadão o direito de protocolar tal pedido no Congresso, mas essa iniciativa vindo do chefe do Executivo constitui um abuso, apontou a entidade. A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) também divulgou nota em defesa da harmonia entre os Poderes.

RECADO O comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, disse que o Exército está comprometido com “a tranquilidade e a estabilidade do País” (Crédito:Divulgação)

Dez ex-ministros da Justiça e da Defesa pediram ao presidente do Senado que rejeite o pedido de impeachment contra Moraes. Em termos duros, afirmaram que Bolsonaro tenta fragilizar o Judiciário e “segue o roteiro de outros líderes autocratas ao redor do mundo”. Da mesma forma, dez partidos de centro e de esquerda também se manifestaram contra a iniciativa do presidente. O grupo Prerrogativas, que inclui juristas, advogados e ex-membros do Ministério Público em grande parte alinhados com o PT, alertou para a “escalada de atos gravemente ofensivos” à democracia. Até os grandes empresários que evitam participar do embate político se mobilizam para defender a democracia. É o que demonstrou o recente manifesto de pesos-pesados do PIB a favor do sistema eleitoral.

Mas a principal resposta veio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Ele rejeitou formalmente o pedido de impeachment de Moraes. “Quero crer que essa decisão possa constituir um marco de reestabelecimento das relações entre os Poderes, pacificação e união nacional”, disse ao ler o arquivamento do pedido no plenário. A rejeição quase unânime da comunidade jurídica ao pedido de afastamento do ministro do STF já tinha feito Bolsonaro hesitar em seus ataques ao seu outro alvo na Corte, o ministro Luís Roberto Barroso. Em outra derrota para o presidente, o ministro Edson Fachin rejeitou a ação em que o governo pedia a anulação do artigo do regimento interno do STF que permite a instauração de inquéritos “de ofício”, sem um pedido do MPF. É o caso das principais ações que atormentam o presidente, como os inquéritos das Fake News.

ESCALADA GOLPISTA Bolsonaristas se mobilizam para o ato de Sete de Setembro: entre as ameaças, invasão do Congresso, do STF e da Embaixada da China (Crédito:Divulgação)

Se o Judiciário e o Congresso fecharam as portas para o avanço golpista, restou ao presidente contar com os militares. Mas não há clima para um apoio ostensivo das Forças Armadas a Bolsonaro no Sete de Setembro. Apesar do barulho pró-Bolsonaro nas associações de militares reformados, entre os generais da ativa ou entre os oficiais de alta patente que mantêm influência sobre a caserna, não há espaço para nenhuma aventura, por mais que o presidente se esforce em agradá-los ou turbine os soldos. Em um movimento discreto, cinco ex-presidentes têm mantido contato para sentir o pulso dos quartéis, diretamente ou por meio de seus antigos auxiliares: Michel Temer, Fernando Henrique Cardoso, José Sarney, Lula e Fernado Collor. Eles ouviram que a disposição entre os militares é respeitar o processo eleitoral e aceitar qualquer resultado que sair das urnas, apesar da interferência constante do presidente. Talvez por isso o próprio comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, tenha expressado uma mensagem equilibrada em um discurso durante cerimônia do Dia do Soldado na quarta-feira, 25, último grande evento militar antes de Sete de Setembro (não estão previstos desfiles no dia da Independência por causa da pandemia). De máscara, ele manifestou o compromisso das tropas com “a tranquilidade e a estabilidade do País”.

DESAFIO Convocado pela PF para explicar declarações golpistas para o Sete de Setembro, o ruralista Antônio Galvan, da Aprosoja Brasil, comparece com apoiadores e tratores (Crédito:Divulgação)

O ministro Luís Roberto Barroso expressou o incômodo com a cacofonia de vozes pela ruptura. “As pessoas me perguntam se tem risco de golpe. Gosto de dizer que não, e acho que não, mas o número de vezes que me perguntam isso começa a me preocupar”, disse o presidente do TSE. O clima de polarização e de insurreição crescente cultivado por Bolsonaro embute riscos, mas pode, afinal, traduzir apenas os últimos suspiros de um político que vê seu poder escapar pelos dedos das mãos. A firmeza das instituições e a serenidade da população são contrapontos contundentes para desarmar suas pretensões golpistas. Bolsonaro apostou em uma virada no Sete de Setembro para salvar seu mandato. O evento pode representar, ao contrário, seu canto do cisne.