Em um dia histórico e sob forte proteção da Guarda Nacional, a Câmara dos EUA aprovou pela segunda vez o impeachment de Donald Trump no último dia 13, por 232 a 197 votos. É a primeira vez que um presidente americano sofre dois processos de afastamento. O resultado é uma grande derrota para o republicano, que viu seu capital político erodir desde que incitou um ataque armado contra o Congresso uma semana antes. A invasão bárbara de extremistas de direita resultou em cinco mortes e horrorizou o mundo, mas não impediu a sessão que confirmou a eleição de Joe Biden, que tomará posse na próxima quarta-feira, 20.

RESSACA Capitólio após o ataque de extremistas insuflados por Trump no dia 6 (Crédito:Al Drago)

A decisão de iniciar esse processo não foi fácil para os democratas, que contavam com a maioria na Câmara. Eles precisavam atrair republicanos para fortalecer sua mensagem— conseguiram dez deles. Um número pequeno, mas simbólico, pois quebrou o apoio incondicional do partido a Trump, que recebeu críticas de ex-aliados. Mas dificilmente haverá consequências práticas. Para o afastamento ser referendado, dois terços dos senadores também precisam concordar. No atual Senado, 22 republicanos precisariam votar pelo impeachment. Na nova composição, a partir da próxima semana, 17 republicanos precisariam aprovar. Isso não deve acontecer. Republicanos como o senador Mitch McConnell, líder da maioria, estão irritados com o presidente e deram sinais de que podem votar pelo afastamento, mas isso é incerto. Tal votação só vai acontecer após a posse de Biden, daí o questionamento sobre a utilidade de um processo tão complexo e sensível nos dias finais de mandato.

Porém, os americanos ainda estão em choque com as cenas de violência que coroaram quatro anos de polarização, ódio e mentiras de Trump. Os comandantes militares chegaram a divulgar uma inédita mensagem de respeito à constituição. Para muitos, afastar oficialmente o presidente, mesmo que fora da Casa Branca, inibe novas investidas autoritárias. Também pode impedir sua volta. Mas o impeachment não garante que Trump não concorra novamente. Isso precisaria ser aprovado (por maioria simples) em outra votação no Senado. Os democratas também querem quebrar a aliança tácita de Trump com os republicanos, que até recentemente surfaram na sua popularidade. São muitos senões. No final, uma absolvição de Trump no Senado pode até voltar a fortalecê-lo.

Insurreição

Pior seria tratar como um fato normal um golpe inédito na histórica americana. A presidente da Câmara, a democrata Nacy Pelosi, o acusou de “incitar a insurreição” e declarou que Trump é um “perigo real e imediato”. É sobre o seu legado que o país se debruça agora. Com o seu punch fracassado, o maior erro político que cometeu até hoje, Trump perdeu o apoio da classe média e dos conservadores que cultivam o discurso pró-ordem. É difícil conciliar isso com o incitamento à turba que massacrou policiais e ameaçou parlamentares, inclusive o vice Mike Pence. O mandatário também não conta mais com as grandes redes sociais, já que Twitter e Facebook o bloquearam. Seus negócios estão em queda, com várias companhias cortando laços com ele. Por outro lado, Trump ainda tem a seu favor uma grande popularidade, e poderá voltar a lucrar com sua marca pessoal, que foi a verdadeira motivação inicial para concorrer em 2016, segundo os críticos. Um de seus últimos gestos poderá ser a concessão de um autoperdão para os seus crimes — um final melancólico.

De qualquer forma, o presidente já conseguiu um feito: ofuscar a posse de Joe Biden, que será o evento mais importante para o país nas últimas décadas. Buscando fortalecer sua mensagem conciliadora para reunificar o país, o futuro presidente tem articulado para que o Congresso não fique consumido com o impeachment e nem deixe que as primeiras medidas de impacto da nova gestão sejam afetadas — a ajuda para a economia e a nova orientação contra a pandemia. Biden também não deseja tirar o brilho de vitórias históricas dos democratas, que afinal também são uma herança de Trump. Desde 1892 os republicanos não perdiam ao mesmo tempo o controle do Executivo e das duas casas legislativas. Já o novo processo de impeachment, inédito e com tantas peculiaridades, testará a força da democracia americana. Se restabelecer a confiança bipartidária na democracia e frear a polarização, ainda que não puna Trump no final, pode indicar que o desenho institucional estabelecido pelos pais fundadores dos EUA, no século XVIII, é tão sólido que garantiu a estabilidade e se antecipou a eventos inimagináveis há 250 anos.