[posts-relacionados]O rosto deformado pertence a Serguei Filin, ex-bailarino e diretor artístico do Balé do Teatro Bolshoi. Ele chegava a seu apartamento, próximo ao anel viário de Moscou, na noite de 17 de janeiro de 2013. Digitava o código de segurança da entrada quando um homem encapuzado veio em sua direção e jogou no seu rosto ácido de bateria de carro que carregava em um frasco. O homem correu para o carro que o esperava, enquanto Filin caía, gritava por socorro e esfregava neve no rosto e nos olhos e assim tentar aliviar a dor. Até que os criminosos fossem descobertos, surgiram fofocas e intrigas na imprensa e nas redes sociais. Filin ocupava um cargo artístico e político. Obedecia o governo, protegia os amigos e perseguia os detratores. Queria “modernizar” o teatro, o que desagradava aos bailarinos formados na era comunista. As primeiras suspeitas levantadas pela imprensa e pelos blogs recaíram sobre o bailarino Nikolai Tsikaridze, veterano, tradicionalista, simpatizante do regime comunista e crítico de Filin. Tsikaridze representava a velha guarda. Reclamava de Filin e da escassez de verbas estatais que costumavam fluir para o bolso dos artistas na era bolchevique. Chegou a declarar ao jornal “Le Fígaro”, mais à maneira do rei Luís 14 do que do líder comunista Leonid Berjnev: “Le Bolshoi, c’est moi” (o Bolshoi sou eu).

A campanha de difamação de Tsikaridze se prolongou até que, em março, a polícia deteve o bailarino Pavel Dmitrichenko, um dos astros do Bolshoi, sob suspeita de planejar o ataque, com a ajuda do ex-presidiário Iuri Zarutski, que jogou o ácido, e o motorista, Andrei Lipatov. Dmitrichenko confessou o ataque. Ele tinha rancor a Filin porque havia despedido sua namorada, a bailarina Tatyana Stukalova.

Serguei Filin, diretor do Bolshoi em 2013, com o rosto desfigurado por um bailarino rival (Crédito:AP Photo/RenTV)

Reputação
A motivação fútil desencadeou o escândalo que abalou as fundações do prédio do Bolshoi, projetado pelo arquiteto Alberto Cavos. A imagem do teatro se revelava aparentemente tão intocável, sua marca se revestia de tamanha pureza que o mundo das artes se revoltou. Houve até políticos russos e não-russos que acusaram a degradação dos costumes num dos santuários da cultura mundial.

No calor da reação mundial, o historiador americano Simon Morrison, professor da universidade Princeton, foi convidado pela editora nova-iorquina W.W. Norton a escrever um livro sobre o caso. “Como sou arquivista, parti para a pesquisa e percebi que só o ‘affair Filin’ não prenderia a atenção do leitor, pois se tratava de um de muitos episódios macabros que fazem parte da cronologia do Bolshoi”, disse Morrison a ISTOÉ. “Minha inclinação natural foi dar um mergulho profundo no rico passado do Bolshoi, usando arquivos e bibliotecas, além, claro, do arquivo do teatro.” Foram três anos de trabalho, com a colaboração de pesquisadores russos, para publicar o livro “Bolshoi Confidencial: os segredos do balé russo desde o regime tsarista até
os dias de hoje”, lançado no Brasil pela editora Record. O livro tem 488 páginas, mas, segundo Morrison, chegaria a 10 mil páginas sem esgotar o assunto.

Caos russo
Ele demonstra que, ao longo de uma história que se inicia no século 18, a luz da ribalta se misturou à obscuridade dos bastidores. O teatro, a companhia de dança e a marca Bolshoi serviram tanto para exibir eventos grandiosos como de palco
para coroações e reuniões de comitês políticos. “O Bolshoi acompanha a história da nação”, afirma Morrison. “Ele
é o símbolo do estado russo e reflete a aspiração nacional e imperial. Até hoje seu repertório é supervisionado por um Comitê de Curadores e pelo Ministério da Cultura. Seu objetivo é criar políticas culturais amplas.”

A instituição viveu fases de ascensão e decadência, de triunfos e crimes. Passou pelo luxo dos tsares e pelas misérias do regime comunista e chega aos dias de hoje tentando recuperar a grandeza passada. Continua mantido pelas verbas do Estado e se tornou um dos orgulhos do presidente expansionista Vladímir Putin. Não surpreende que tenha até um braço fora do território russo, a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em atividade desde 2018 em Joinville, Santa Catarina.

Morrison descobriu o esperado, que a reputação do teatro é de solidez — e sordidez. Sua história, e a dos artistas e personalidades que por lá passaram, não é tão ilibada quanto possa parecer. Ele tem abrigado de escândalos de todo tipo: tráfico de pessoas, assédio sexual, escândalos políticos, assassinatos e tramas que, para muitos, só podem ser explicados pelo caos do chamado “espírito russo”. “Mas isso não é justo”, diz Morrison.“A Ópera de Paris tem mais histórias escabrosas que o Bolshoi. Em todo lugar, artistas são conhecidos pela paixão e obsessão pelo que fazem. Mas o Bolshoi chama atenção por um motivo: é o teatro mais importante do mundo.”

Fotos: Reprodução; AP Photo/RenTV; Divulgação; Reprodução; AP PHOTO/STR