O jurista Heleno Taveira Torres, considerado um dos maiores advogados tributaristas do País, diz que a regulamentação da Reforma Tributária que está sendo preparada pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda) e será encaminhada à Câmara até o próximo dia 15 dotará o Brasil com uma das legislações tributárias mais modernas e um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dos mais tecnológicos do mundo. Ele entende que o IVA de muitos países, como os da Europa, envelheceram, e que o Brasil está se apropriando de experiências de IVAs mais avançados, como os do Canadá, Austrália e Índia. Professor titular de Direito Financeiro do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Torres acredita que a Reforma Tributária brasileira, que terá seu CBS (imposto do governo federal que vai substituir o PIS e o Cofins) e o IBS (imposto dos estados e municípios que substituirá o ICMS e o ISS) normatizados por Haddad nos próximos dias e que deverão ser aprovados pelo Congresso ainda este ano, mudará por completo a cara do federalismo brasileiro, e isso será visto de forma muito acelerada. “Veremos uma dinâmica de mudanças dentro da federação nunca vista nos últimos 50 anos”, com empresas podendo se instalar de forma competitiva em estados do Norte e Nordeste, por exemplo, pois acabará a política nefasta dos incentivos e a consequente guerra fiscal.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, disse que pode haver judicialização caso a Reforma Tributária exceda os 27%. Há setores que serão penalizados com uma carga acima desse teto? O sr. acha que haverá a judicialização?
A opção de uma reforma constitucional que veio da Emenda Constitucional 132 traz o risco de uma elevada judicialização. Pode ter um alto grau de judicialização se houver um descasamento do teor constitucional e as leis complementares que vão regulamentar o texto. Haverá conflito em alguns pontos. Já há, em diversos aspectos, indícios de judicialização, como no caso do Imposto Seletivo, que trata da taxação de produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente. E aí já começamos pela própria discussão a respeito do que afeta e o que não afeta a saúde e o meio ambiente.

Pode citar um exemplo?
Vamos pensar nas bebidas alcoólicas. Haverá uma alíquota única para a cerveja, que representa 90% do consumo dos brasileiros de bebidas alcoólicas? Haverá alíquotas diferenciadas conforme a graduação alcoólica, do tipo de fermentação ou outras formas de fazer a bebida? Isso pode trazer riscos de judicialização. E os alimentos ultraprocessados que, na verdade, compõem a mesa daqueles que são os mais pobres, como salsichas, macarrão instantâneo, tipo miojo, etc.? Essas formas de tributação podem trazer riscos de contenciosos dos produtores e dos consumidores na Justiça. Os cálculos do IBS e CBS indicam uma alíquota de 27%, mas existe a possibilidade de ela ser reduzida se houver a aplicação da alíquota de teste e se verificar que, pelo aumento da base tributável e da quantidade de contribuintes alcançados, além da redução dos incentivos fiscais, e também combate à sonegação, pode haver a redução da alíquota.

“O IVA brasileiro será um dos mais modernos do mundo”, diz jurista Heleno Torres
“Lira reclamar faz parte do processo político. Não há atraso da regulamentarção por parte de Haddad porque os grupos de trabalho estão funcionando muito bem” (Crédito:William Volcov)

Ou seja, podemos ter uma alíquota de 27% para alguns setores e mais de 27% para outros, é isso?
Exato. Não é correta a afirmação de que haverá uma alíquota única. A União tem o seu CBS — que é a Contribuição sobre Bens e Serviços — para substituir PIS e Cofins e os estados e municípios terão o IBS, Imposto sobre Bens e Serviços, para substituir ISS e ICMS. Quem vai deliberar sobre a alíquota do IBS, segundo os parâmetros das leis complementares, serão estados e municípios na origem. Haverá um indicativo de alíquota padrão, mas isso não quer dizer que os estados e municípios estejam obrigados a seguir exatamente esse parâmetro.

Pode haver casos em que a alíquota será inferior aos 27%?
Teremos as situações de regimes diferenciados que poderão ter alíquotas reduzidas. Pode ser zero, como há em alguns casos que já estão previstos como alíquota zero. Esse é o caso da cesta básica e temos aqueles que são regimes com valores reduzidos, como são os serviços financeiros. Quem vai sofrer mesmo com a Reforma Tributária será o setor de serviços, porque esse segmento tem hoje uma alíquota muito reduzida, de 2 % a 5% do ISS. Esse contribuinte, que está no regime cumulativo pagando também o ISS reduzido, certamente sofrerá um aumento de carga tributária expressivo e terá que repassar esse custo para o consumidor. Será um capítulo a ser conhecido só depois da apuração dessas alíquotas.

De qualquer forma, esse setor pode sair de um imposto de 5% para 27%, Não é um aumento muito grande?
O que vai pesar mesmo será esse salto de uma tributação de 2% a 5% para 27% na somatória do IBS com o CBS. Mas há setores, como o industrial, em que vai acontecer o contrário. Vai sair ganhando. Pagava 40%, 50% e a alíquota vai cair para 27%. A Reforma Tributária é muito positiva porque ela vai corrigir distorções da cadeia de produção e consumo. Então, a aplicação desse regime da Reforma Tributária vai permitir uma redução auspiciosa da carga de impostos e até mesmo queda dos preços dos produtos.

O mais importante é que essa simplificação dos impostos, com um IVA único, será um avanço que vai colocar o país entre as economias mais modernas, certo?
A Reforma Tributária vai mudar por completo a cara do federalismo brasileiro e isso será visto de forma muito acelerada. Veremos uma dinâmica de mudanças dentro da federação nunca vista nos últimos 50 anos, com movimentos demográficos potenciais, porque haverá um deslocamento das empresas não mais baseado no aproveitamento de benefícios fiscais e sim na eficiência econômica. O empresário não vai colocar uma fábrica num estado ou município só porque está recebendo um incentivo fiscal. Isso pode trazer de novo uma concentração de produção no Sul e Sudeste? É possível, mas aí isso acontecerá em virtude das facilidades de transporte, logística, da aceleração da capacidade de consumo. Será muito difícil que tenhamos a concentração econômica que tínhamos no passado. Também haverá redução das práticas danosas da guerra fiscal, de atração de investimentos de forma hostil unicamente baseada em incentivos.

“O IVA brasileiro será um dos mais modernos do mundo”, diz jurista Heleno Torres
“O déficit zero é uma tarefa muito difícil. A grande virtude de Haddad é perseguir a meta de zerar o déficit, que não foi gerado por ele. Foi herdado e vem desde 2014” (Crédito:Evaristo Sa)

O sr. credita que o ministro Haddad encaminhará ao Congresso a regulamentação da Reforma Tributária por lei complementar até 15 de abril?
Acho que sim. Deve mandar ao Congresso pelo menos uns quatro projetos. Um projeto de lei complementar para a CBS, outro para o IBS, outro para o Imposto Seletivo e um quarto sobre o Comitê Gestor.

Podemos afirmar que a regulamentação acontecerá este ano ou ficará para o ano que vem?
Confio que, até o final de junho, o Congresso tenha condições de votar e aprovar essas leis.

Então por que o presidente da Câmara, Arthur Lira, tem dito que Haddad está retardando a reforma e reclamou até com Lula?
Lira reclamar faz parte do processo político. A Câmara precisa ter protagonismo nesse debate. Não há atraso porque os grupos de trabalho estão funcionando muito bem. Acho que são legislações dificílimas. Não podemos imaginar essas leis complementares sendo mera reprodução da Constituição. São técnicas jurídicas muito complexas. Quem está redigindo precisa de tempo para fazer vários cenários de aplicação dessas regras. Estima-se que essa lei complementar tenha 200 páginas. São 19 grupos de trabalho com aproximadamente 10 ou15 pessoas em cada grupo e são pessoas muito qualificadas. Senti a falta de representantes do setor privado nesses grupos de trabalho. Não abro mão dessa minha posição. Continuo achando que o governo errou ao não integrar, nos grupos de trabalho, representações dos contribuintes. O que teria facilitado enormemente, por exemplo, a obtenção de dados de setores específicos.

Isso atrapalhou a qualidade da nossa reforma?
Apesar disso, teremos uma das legislações mais modernas e um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) dos mais mais tecnológicos do mundo, porque o IVA, em muitos países, envelheceu também. Na Europa, é um tributo envelhecido, e o Brasil está se apropriando de experiências em diversas situações e de IVAs muito avançados, como é o caso do Canadá. Está aproveitando também as mudanças na Austrália e na Índia.

Se não aprovarmos logo essas regulamentações, o Brasil corre o risco de ter sua imagem arranhada no exterior, dificultando novos investimentos estrangeiros?
Com a aprovação da Reforma Tributária conclui-se um ciclo político e isso será o grande recado para o mundo. Creio que os investimentos e os planejamentos das empresas estrangeiras, dos grandes fundos, todos terão elementos suficientes para entender as mudanças que ocorrerão no Brasil nos próximos cinco anos. O governo está certo em colocar toda a sua energia nessa parte da Reforma Tributária e o Congresso também está certo de se comprometer em dar esse retorno, até porque é um ano em que terminam os mandatos dos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira. Todos estão muito comprometidos com as suas bases para entregar aquilo que prometeram deixar de legado. Então, terão de aprovar a parte do consumo no primeiro semestre e, no segundo, completar a parte da renda e do imposto sobre folha de salários. Terá impacto na geração de emprego e de renda.

Entende que o ministro Haddad vai conseguir o déficit zero neste ano?
É uma tarefa muito difícil. A grande virtude do ministro Haddad nesse momento é ele perseguir esse déficit, que não foi gerado por ele. Foi herdado e vem desde 2014. Desde aquele ano, déficits foram sendo gerados e o compromisso do ministro Haddad em pôr fim a esse ciclo tem que ser visto como algo virtuoso. Ele tem que ser aplaudido porque alguém tem que pôr fim a esse modelo que sempre foi empregado nos últimos anos como forma de gastar mais. É estranho que os críticos acusem o governo de ser gastador. Não apoiam o ministro nesse seu esforço de zerar o déficit. Acho que o arcabouço fiscal, que é uma forma de teto fiscal na prática, é um procedimento adequado e tem chances de chegar a bom termo. Se não conseguirmos neste ano, que seja um grande passo para que no ano que vem, com esta Reforma Tributária, e outras que estão por vir, cheguemos à melhoria das contas públicas.