VINTAGE Os tesouros de McCartney: o baixo original que pertenceu a Bill Black, músico que acompanhava Elvis Presley, foi um presente de aniversário (Crédito:Mary Mccartney)

Em 1970, após passar dois meses de férias com a família em uma fazenda em Campbeltown, na Escócia, Paul McCartney voltou a Londres e começou a gravar o primeiro álbum sem os Beatles. Eles ainda nem tinham se separado oficialmente, mas como John Lennon já havia anunciado que deixaria a banda, Paul quis sair na frente e lançar logo as canções compostas no retiro escocês. Usando apenas um gravador rudimentar de quatro canais, cantou e gravou todos os instrumentos, com exceção dos vocais de apoio feitos por sua mulher, Linda. Três meses depois chegava às lojas “McCartney”, disco repleto de canções geniais, mas marcado por uma qualidade sonora quase amadora, bem diferente das orquestrações complexas criadas durante a parceria dos Beatles com o produtor George Martin.

Dez anos depois, em 1980, McCartney se viu novamente diante de um processo de separação musical. Dessa vez, o alvo era o Wings, grupo que ele mesmo havia criado. Veio então um novo período de ócio criativo na fazenda escocesa: Paul retornou ao estúdio caseiro e saiu de lá com “McCartney II”, álbum com pitadas de música eletrônica em que, mais uma vez, cantou e tocou todos os instrumentos.

O ex-Beatle deve gostar de anos terminados em zero. Aconteceu em 1970, 1980 e, novamente, em 2020. “McCartney III” chega 50 anos depois de sua primeira incursão solo. Mais uma vez, Paul toca tudo. O contexto, porém, é bem diferente: esse ano foi a pandemia que o forçou a se isolar. Outra diferença é que a tecnologia atual é bem superior a que havia antes, e o novo estúdio de Paul não deixa nada a desejar aos melhores do mundo.

Orgânico

“McCartney III” não soa, no entanto, como outros álbuns produzidos nos dias de hoje. Gravar música em casa, aceitando eventuais imperfeições técnicas, inspira um elemento mais humano – “orgânico” seria o adjetivo mais adequado. Paul é um excelente músico, mas não é um virtuoso. Não tem a pegada, por exemplo, de um baterista como Abe Laboriel Jr., que o acompanha nas turnês há anos. Essa diferença na performance é o que torna o álbum tão especial.

A característica artesanal, de ourives, é ressaltada graças ao uso de instrumentos muito especiais, vintage, a maioria deles da época dos Beatles, como o lendário baixo-violino Hofner. O mellotron, espécie de teclado psicodélico, foi comprado do estúdio Abbey Road. Outro instrumento icônico usado nas sessões foi o contrabaixo original do trio Bill Black, que acompanhava Elvis Presley, presente de aniversário comprado por Linda McCartney anos atrás.

Não é preciso nem lembrar da época dos Beatles para constatar que a carreira solo de McCartney é impressionante, com dezenas de sucessos e parcerias com nomes como Michael Jackson e Stevie Wonder. Foram 25 álbuns de estúdio, sete de música clássica, cinco de música eletrônica. Fez incansáveis turnês mundiais, levou sua música a todos os continentes. Mas “McCartney III” e os álbuns anteriores da trilogia que gravou sozinho trazem algo único: a essência de sua personalidade musical.

Ouvidos em conjunto, eles revelam um artista visceral, inovador e experimental, bem mais avant-garde do que o trovador romântico que encantou o mundo com “Yesterday”. Tolstói dizia que o artista que deseja ser universal deve começar cantando a sua aldeia. Paul amplia essa ideia: consegue ser global e atemporal cantando em casa. Graças ao seu isolamento, compreendemos melhor quem ele é e, com isso, conseguimos entender melhor quem somos.

“Fiquei confinado na fazenda com a minha família e ia ao estúdio todos os dias. Gravei músicas para um filme e, quando acabou, pensei: ‘o que vou fazer agora?’. Tinha coisas em que trabalhei ao longo dos anos, mas o tempo se esgotava e a música ficava parada. A cada dia, comecei a gravar tudo em camadas. Foi divertido compor para mim mesmo, sem pensar que era um trabalho. Só fiz o que gostava de fazer. Não tinha ideia de que isso iaacabar virando um álbum”.
Paul McCartney, sobre “McCartney III”