Borboletas amarelas revoavam pela casa de Aracataca, cidade colombiana próxima do mar do Caribe, onde Gabriel García Márquez nasceu em 1927. Ele as transportou para cenas do romance “Cem Anos de Solidão”, escrito entre 1965 e 1966 na casa onde viveu na Cidade do México, e onde também recebeu a notícia de que havia vencido o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982. E, justamente agora, quando se comemoram 40 anos dessa conquista, a neta Emilia García Elizondo descobriu um tesouro na casa mexicana. Buscava fotos para mais uma exposição em homenagem a Gabo, ao lado do pai Orlando, quando encontrou uma caixa com a inscrição “Nietos”, deixada pela avó Mercedes Barcha, a “Gaba”, falecida em 2020. Dentro, envelopes com 150 cartas. São folhas e folhas de carinho dirigidas ao colombiano, escritas à mão ou à máquina, em espanhol, inglês e francês, por presidentes e reis; diplomatas e chanceleres; cineastas, fotógrafos e poetas. Assinam: Robert Redford, Fidel Castro, Pablo Neruda, Wim Wenders, Richard Avedon…

E se as borboletas amarelas preenchem a imaginação dos leitores de Gabo por todo o mundo, o sobrado da rua De la Loma, 19, no bairro de San Angel, se tornou o refúgio daquele que inventou o realismo fantástico na literatura. Ali, Gabo escreveu a obra-prima gestada por 17 anos, traduzida em 45 idiomas e com mais de 47 milhões de cópias vendidas, e onde viveu até sua morte, em 2014. Por isso, a sala do sobrado reservada para eventos foi escolhida para receber cerca de 40 das cartas recém-descobertas. A exposição “El escritor, sí, tiene quien le escriba” (“O escritor, sim, tem quem lhe escreva”), aberta em 16 de junho, é um contraponto ao título do romance “Ninguém escreve ao General”, que Gabo considerava seu melhor livro. E, dali, Gabriel García Márquez acabou influindo na vida real de seus leitores famosos, como atestam as cartas que chegam de Nova York, Havana, Tel Aviv e das selvas de Chiapas, no México.

INTIMIDADE Redford fala na “idade das trevas” em referência a vistos para cubanos nos EUA
SURPRESA Emilia e o pai, Orlando, encontraram as cartas de fãs famosos, agora em exposição na casa mexicana de Gabo (Crédito:Claudio Cruz)

Ator e diretor, Robert Redford comenta a visita de Gabo ao Sundance, festival alternativo de cinema que criou nos EUA, e as dificuldades com vistos para cubanos. O poeta chileno Pablo Neruda confirma um encontro em Paris, na “Taberna do Cavalo Verde”. Bill e Hillary Clinton dão parabéns pelo aniversário, assim como o rei Juan Carlos, da Espanha, que manda abraço e diz não ter conseguido completar ligação por telefone. Fidel Castro, o ditador cubano, começa com um “Querido Gabo” e menciona entrevista a um jornalista “que diz ser seu amigo”. Das montanhas mexicanas, o subcomandante Marcos, do Exército Zapatista, convida o “mestre” a “conspirar contra as sombras que nos afogam”. Depois de diagnosticado com câncer, em 1999, Gabo recebe um “se precisar de qualquer coisa, me chame”, do diretor Woody Allen. O fotógrafo Richard Avedon quer um novo retrato porque o anterior, tirado em dia sem luz, considerava um “fracasso”…

Neta de Gabo, Emilia conta que ela e o pai Orlando (que só tem um irmão, Rodrigo) levaram um susto com a descoberta das cartas, porque toda a documentação do avô foi adquirida em 2014 pelo Harry Ramson Center, do Texas. Teria sido a avó que optou por não se desfazer delas? E não existem cartas trocadas entre ela e Gabo? Essas dúvidas também motivam a curiosidade de Andrea Limberto, doutora em Ciências da Linguagem pela USP, que destaca: as cartas a Gabo ganham diferentes planos de importância e são merecedoras de curadoria, para estudos de diversas áreas específicas.

HUMILDADE Fidel Castro menciona filhos e netos de Gabo e lhe “rende tributo” (Crédito:Claudio Cruz)

Do gênero epistolar grego, observa a professora, onde cartas serviam como saudações ou súplicas, os séculos colaboraram para mudanças que resultaram em mensagens afetivas e mesmo confidenciais, depois informativas, depois passaram a blogs. Agora há um retorno à oralidade. Mas as cartas para Gabo retratam escritos íntimos de personalidades e revelam facetas desconhecidas desses personagens públicos, “como um Fidel menos duro”, além de histórias inéditas, comentários de fundo e até prevalências políticas. São “marcas de autoria”, distintas, e podem ser estudadas sob vários aspectos. Elevadas a objeto de exposição, de documento histórico, merecem ser analisadas a partir de distanciamento temporal e emocional, para que revelem mais do que interessa à ciência da linguagem. Também podem ser revistas como parte da época em que cartas eram “uma janela para o mundo” — e mesmo se especular sobre como era planejada a logística dos correios. Além disso, observa Andrea, deve-se lembrar “de um certo voyeurismo por parte de quem se interessa pelas cartas, como se espiássemos pelo buraco de uma fechadura”.