Rios irão secar e onças-pintadas ficarão mais perto da extinção. Araras-azuis e outras espécies maravilhosas idem. É uma catástrofe de proporções inéditas que terá repercussões em outros ecossistemas e nas respectivas cadeias alimentares. Seus efeitos atmosféricos começam a se fazer visíveis com a fuligem que alcança cidades do Sudeste e do Sul do País, a mais de dois mil quilômetros de distância. O maior problema é que a estiagem continua e só um milagre poderá trazer chuvas a curtíssimo prazo (elas são esperadas só a partir de outubro), o que significa que a tragédia do Pantanal, se depender do clima, deve se acentuar: principalmente porque não há gestão da crise por parte do governo e nem articulação de forças para conter as chamas.

O presidente Jair Bolsonaro foi negligente no enfrentamento inicial das queimadas e agora não tem capacidade de reação. Age atabalhoadamente, mais preocupado com a contrainformação, em desmentir ou relativizar os fatos, do que em colocar a máquina de combate ao fogo para funcionar. Na semana passada, em mais uma manifestação irresponsável, Bolsonaro caiu na gargalhada ao ser questionado, por uma garotinha que participava de uma reunião ministerial, se havia incêndio no Pantanal. O vice-presidente, Hamilton Mourão, também tratou jocosamente a situação. Na quarta-feira 16, o presidente tratou mais uma vez de minimizar a tragédia. “Há críticas desproporcionais à Amazônia e ao Pantanal”, afirmou. “A Califórnia está ardendo em fogo, a África tem mais focos que o Brasil”. No discurso que Bolsonaro fará, terça-feira 22, na ONU, o presidente dirá que as críticas internacionais às queimadas no Brasil são “equivocadas”. Mourão, por sua vez, questionou o funcionamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Alguém lá de dentro faz oposição ao governo. Quando o dado é negativo o cara divulga, quando é positivo não divulga”, disse. O Inpe desmentiu a acusação.

“O cenário é desolador, de guerra. Um deserto cinza em muitos pontos. A nossa corrida, agora, é contra o tempo” Carla Sassi, médica veterinária

Há um conjunto de causas que levam ao incêndio no Pantanal. Existe o fator sazonal, de estiagem, afetado agora pelo aquecimento global e por variações climáticas significativas e desconhecidas verificadas em várias partes do mundo. Mas o peso maior é da ação humana destrutiva, que não foi inibida no momento oportuno. A estrutura de fiscalização da agência de proteção ambiental, o Ibama, assim como a do órgão que cuida da conservação de parques (ICMBio) foi desmantelada, faltam funcionários e quase nada pode ser efeito para impedir os avanços dos incendiários. As Forças Armadas atuam na região, mas sem qualquer ação preventiva. Não há mais multas ambientais e o governo preserva os fazendeiros e coloca as queimadas na conta da “cultura do caboclo”. Desde os primeiros focos, perdeu-se mais de um mês para a decretação do estado de emergência no Mato Grosso do Sul, que vai durar 90 dias.

“Estamos falando de algo nunca antes visto. É o verdadeiro colapso ambiental”, reforça o engenheiro florestal e coordenador do Núcleo de Inteligência Territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), Vinícius Silgueiro. Num estudo que mostra o tamanho da tragédia, o ICV detectou que 85% do Parque Estadual Encontro das Águas, a 102 quilômetros de Cuiabá (MT), foi destruído pelas chamas. O parque, antes um paraíso que reunia o maior grupo de onças-pintadas do mundo, tem 108 mil hectares, dos quais 92 já estão queimados. “Toda essa cinza, quando chega nos canais de água, compromete a produção de fitoplânctons e, consequentemente, toda cadeia alimentar e o equilíbrio do ecossistema”, disse.

“A flora se recompõe. Só não pode ser um fogo da proporção gigantesca que está sendo” Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente

Ação humana

Segundo Silgueiro, não há dúvidas de que as chamas nasceram de ação humana. Um levantamento citado por ele mostra que tudo começou com nove pontos de incêndio, cinco deles na chamada área de cadastro rural (com legalidade de atuação reconhecida pelo Estado), três focos em territórios não cadastrados e um dentro de uma área indígena. O governo do Mato Grosso realizou cinco perícias técnicas no Pantanal que confirmam a ação humana como causa do fogo na região.

Trabalham neste momento no combate às chamas no Mato Grosso do Sul cerca de 300 bombeiros e voluntários. As Forças Armadas contam com 400 homens atuando no Pantanal. Até o momento, o governo federal direcionou somente R$ 3,8 milhões para o combate às queimadas. “A estratégia do Exército atinge apenas as áreas onde o crime ambiental já aconteceu, eles sempre chegam atrasados”, diz o presidente da Ascema Nacional, Denis Rivas. “Isso não contém o avanço do desmatamento”. Segundo Rivas, de 2018 para cá, houve um corte orçamentário dentro do IBAMA e do ICMBio e há 2.600 vagas nos dois órgãos que precisam ser preenchidas. Com pouca mão de obra pública, o que resta é a ação voluntária na linha de frente no combate ao incêndio. Inúmeros brigadistas tomaram a dianteira dos trabalhos para o salvamento do bioma. “Nós perdemos o controle”, afirma o brigadista voluntário e guia turístico Abelardo Rodrigues, que chega a trabalhar mais de doze horas seguidas na região da rodovia Transpantaneira, local do ápice das queimadas: “Infelizmente, estamos perdendo essa batalha para o fogo”. A mesma situação vive a médica veterinária Carla Sassi, integrante do Grupo de Resgate de Animais em Desastres (GRAD), cuja equipe fornece água e alimento aos espécimes que estão sucumbindo de fome e sede.

“O cenário é desolador, de guerra. Um deserto cinza em muitos pontos. O número de espécies e animais atingidos é incalculável”, disse Carla. “A nossa corrida, agora, é contra o tempo. Não para salvar os animais queimados, mas para garantir o mínimo suprimento alimentar e de água para aqueles que sobreviveram ao fogo”.

“Alguém lá de dentro (no Inpe) faz oposição ao governo. Se o dado é negativo o cara divulga” Hamilton Mourão, vice-presidente da República

O incêndio já destruiu uma área equivalente a do estado de Sergipe. Na maior seca em 50 anos, o Rio Paraguai corre o risco de deixar de ser navegável. Seus níveis baixaram terrivelmente. De forma atípica, o rio não transbordou entre junho e julho. Cerca de mil e duzentas espécies de vertebrados, entre elas trinta e seis ameaçadas de extinção, incluindo jacarés, pássaros e a maior população de onças-pintadas do mundo, estão à beira da morte. Na área mais afetada pelas chamas, na estrada Transpantaneira, voluntários tentam socorrer aquilo que podem. Mas, ainda assim, sofrem com críticas infundadas. Nas redes sociais circulou um vídeo mostrando brigadistas ateando fogo em locais específicos do Pantanal. Sem nenhuma explicação da técnica, eles foram atacados como sabotadores. Diziam que os incêndios eram causados por eles mesmos. A técnica é chamada de aceiro negro ou pinga-fogo e é estritamente calculada para conter os incêndios. Cientistas alertam que o bioma está a um passo de perder a sua capacidade de autorregeneração. Mantidos por mais tempo os níveis atuais de destruição, o Pantanal pode não se reconstituir. O próprio ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, favorável à passagem da boiada sobre a floresta, admite essa possibilidade. “De fato, o prejuízo à nossa fauna é grande. A flora e parte da vegetação se recompõem. Agora não pode ser um fogo da proporção gigantesca que está sendo, então por isso que estamos combatendo fortemente”, disse.

Se já não bastasse a queima do Pantanal, a devastação da Amazônia, outro ecossistema que arde em chamas, também corre o risco de se tornar irreversível. Se 30% da floresta for queimada, ela já não poderá mais ser considerada um bioma tropical — perderá, de forma íntegra, a sua função pluvial. É dela que vem as principais chuvas do País. Devido ao desespero, uma união inédita entre ambientalistas e ruralistas surgiu para tentar salvar a Amazônia: a Coalizão Clima Florestas e Agricultura, que reúne mais de duzentas organizações de proteção e produção. Outra coalizão desse tipo seria extremamente útil, nesta altura, para ajudar o Pantanal. “A tendência é que os problemas de seca continuem recorrentres”, afirma o biólogo André Aroeira. “Se isso se repetir mais vezes, essa vegetação não se recupera. Há estudos que apontam o risco de desertificação nessa região”.

A imagem que hoje fica dos maiores biomas brasileiros se resume a incêndios e destruição. A morte dos animais, a seca nos rios e o fogo imparável trazem desolação e impotência. Há um pedido de socorro da fauna e da flora que ensurdece, mesmo em silêncio. Em meio a uma catástrofe sem precedentes, o Pantanal nunca esteve tão perto da destruição. Uma das paisagens mais exuberantes do planeta pode simplesmente desaparecer.