Responsável por organizar a deportação de judeus para campos de concentração na Alemanha nazista, Adolf Eichman, quando julgado, em 1961, insistia que era inocente dizendo ter apenas cumprido ordens. No livro “Eichmann em Jerusalém – Um Relato Sobre a Banalidade do Mal”, a filósofa alemã Hannah Arendt retrata o réu como um burocrata que assinava documentos e não questionava as normas. “Só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam — embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte”, escreveu Hannah. Surpreende tanto quanto aterroriza o fato de a premissa característica de governos autoritários, a do cumprimento de ordens mesmo em casos de extermínio, ser usada em um tribunal brasileiro e, pior, ser aceita do outro lado do púlpito. Na terça-feira 27, o desembargador Ivan Ricardo Sartori, da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, pediu a absolvição dos 74 policiais condenados em 2013 e 2014 pelos 111 assassinatos cometidos em 1992, no episódio que ficou conhecido como “massacre do Carandiru”, alegando que agiram no “estrito cumprimento do dever legal” e em “legítima defesa”. Os dois outros magistrados que julgaram o caso, Camilo Léllis e Edison Brandão, votaram pela anulação das condenações, e foi esse o desfecho de mais um capítulo da chacina, que se arrasta por mais de 20 anos sem punições efetivas. Organizações internacionais, como Human Rights Watch e Anistia Internacional, repudiaram publicamente a decisão. Agora, o processo volta ao começo.

“Essa decisão soa como uma autorização para matar”
Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

SOBREVIVENTES: Detentos em pavilhão do presídio, que foi implodido em 2002
SOBREVIVENTES: Detentos em pavilhão do presídio, que foi implodido em 2002

ESTADO DE GUERRA

“Essa decisão soa como uma autorização para matar”, diz o sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que considera as declarações do desembargador assustadoras. Segundo Lima, a alegação de que os policiais não podem ser culpados por estarem seguindo um comando não se sustenta, pois naquela situação o batalhão poderia se colocar contra a ordem, uma vez que os presos estavam desarmados e encurralados e não representavam uma ameaça. Na contramão do argumento da legítima defesa, os fatos: mais de 300 PMs entraram no pavilhão 9, onde a rebelião começou, com metralhadoras e bombas; só 22 policiais militares se feriram, nenhum gravemente e tampouco com arma de fogo; a perícia concluiu uma média de cinco tiros por corpo; nove em cada dez homens receberam tiros no pescoço e na cabeça – áreas vitais, atingidas para que a pessoa seja morta. “Se fosse em uma guerra, tudo bem. Há situações em que, mesmo resultando em morte, é legal. Mas precisa ser uma reação proporcional à situação. No Carandiru não foi”, afirma Lima. O próprio jurista Ivan Sartori admite que houve excessos quando diz que “dentre esses policiais, acredito que tenha havido dois ou três que se aproveitaram da situação da condição de assassino”. Os 111 detentos foram mortos em menos de 20 minutos, 102 baleados e nove com armas que não eram de fogo.

IMPUNIDADE: Magistrados do Tribunal de Jutstiça de São Paulo, que decidiram pela anulação das condenações
IMPUNIDADE: Magistrados do Tribunal de Jutstiça de São Paulo, que decidiram pela anulação das condenações

“O recado é claro: façam o que quiserem que aqui nós absolvemos”
Martim de Almeida Sampaio, diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP

O Tribunal ainda afirma que é difícil definir qual o grau de culpabilidade de cada policial, pois não é possível saber exatamente quantos presos foram mortos por cada um. “Embora se use esse argumento técnico para legitimar a anulação, há um conjunto de informações que respaldam a decisão do júri em primeira instância que não foi considerado”, diz Camila Nunes Dias, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e professora de sociologia da Universidade Federal do ABC (UFABC). Com brechas na investigação pericial pelo fato de os corpos terem sido empilhados e as cenas alteradas pelos próprios policiais, seria preciso um tratamento especial para o caso, não um julgamento técnico e pontual. “É necessário pensar a conduta da cadeia de comando como um todo”, afirma Lima.

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A mensagem que a anulação das condenações passa, segundo o diretor da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), Martim de Almeida Sampaio, é a de que o judiciário dá respaldo para a PM agir de maneira autoritária. “O recado é claro: façam o que quiserem que aqui nós absolvemos”, afirma. Assusta ainda a ideia de que grande parcela da sociedade avalize condutas violentas da polícia. Uma pesquisa realizada em junho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que 50% da população acredita na máxima de que “bandido bom é bandido morto”. “Esse dado revela nosso déficit civilizatório”, afirma Lima, diretor do Fórum. Permitir a violência irrestrita não é o caminho para resolver a criminalidade. Pelo contrário, o massacre no Carandiru foi o que culminou na criação da organização criminosa PCC. Isso não significa que uma polícia forte não seja importante. Ela é, sim, uma instituição fundamental para a manutenção da democracia. A força policial não pode ser sinônimo de barbárie e matança mas de inteligência, no sentido de conter desordens em vez de fazê-las aumentar. E o judiciário deveria punir qualquer ação contrária a essa ideia, e não dar respaldo, como fez na terça-feira 27. “Um Estado que permite a impunidade nesse caso é o mesmo que não se preocupa com educação, saúde e moradia. Direitos humanos envolvem tudo isso”, diz Sampaio, da OAB-SP. Não é uma questão de proteger detentos. Eles tinham que pagar por seus crimes, mas massacrá-los é inconstitucional.

Com o julgamento voltando ao início e sem nova data para acontecer, a possibilidade de definir e punir os culpados é ínfima. A injustiça já está feita. Primeiro, pelo óbvio: passados 24 anos do massacre, nenhuma pessoa foi punida. Na primeira tentativa de condenação, em 2001, o coronel Ubiratan Guimarães, que chefiou a chacina, chegou a ser condenado, mas recorreu em liberdade e foi absolvido cinco anos depois. No meio tempo, se candidatou a deputado estadual escorado na “fama” que o caso lhe concedeu e usou o número “111” em sua candidatura, uma ironia ao lamentável episódio, tendo sido eleito. Meses depois da absolvição, foi assassinado a tiros em seu apartamento em São Paulo. Nenhuma outra autoridade ou membro do alto escalão da PM foi culpabilizado no processo. O que mostra que o lado mais fraco não é apenas o dos detentos. “Essa conduta de destruição é estimulada nos gabinetes, mas quem morre é quem está no dia a dia, inclusive os policiais”, diz Renato de Lima. Em certo trecho de “Eichmann em Jerusalém”, Hannah Arendt afirma que, embora a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência diga “não matarás”, a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”. Meio século depois do julgamento de Eichmann, que foi condenado à morte, parece que esse raciocínio, infelizmente, ainda ecoa no Brasil.

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Foto: Tamar Miranda/Estadão conteúdo; Infográfico: Nilson Cardoso; Fotos: Rovena Rosa/Agência Brasil; Marlene Bergamo/Folhapress