Na quinta-feira 18, os sinos de 103 catedrais francesas soaram às 18h50, horário de Paris. A homenagem foi a maneira mais singela que a França encontrou para lembrar a tragédia que havia acontecido três dias antes, na mesma hora, quando parte da Catedral de Notre-Dame, em Paris, foi tomada pelo fogo. Enquanto os sinos dobravam, o país europeu silenciou de dor. Na segunda-feira 15, não só a França, mas o mundo, pararam para acompanhar com tristeza as chamas destruindo um monumento que havia muito tempo deixou de exercer fascínio apenas em território francês. A Notre-Dame é, hoje, uma joia da humanidade. Vê-la sendo consumida pelas chamas doeu em cada ser humano que compreende o valor da história, da arte e dos passos que o homem deu em direção à formação da civilização ocidental.

No crepúsculo da segunda-feira 15, paris, a cidade luz, ardia em chamas e sua população perplexa assistia à destruição de um dos maiores ícones de sua existência: a Catedral de Notre-Dame, marco zero da cidade.no teto, onde estava a sua cobertura de madeiras seculares, o fogo consumia história

AOS PÉS DA PIETÀ Escultura de Maria resistiu: consolo e esperança a todos nós (Crédito:LUDOVIC MARIN)

Como um contraponto a sua grandeza, Notre-Dame parece ter sido vítima de mais uma tragédia anunciada, ocorrida durante um trabalho cujo objetivo era mantê-la viva. A catedral passa por uma reforma extensa desde abril de 2018. A edificação estava em situação crítica. Localizadas no alto de paredes externas, as gárgulas (estátuas de figuras deformadas que representam a defesa do prédio contra o demônio) exibiam sinais graves de desgaste, por exemplo. Na sexta-feira que antecedeu o incêndio, o ministro da Cultura da França, Franck Riester, discutiu com representantes da empresa responsável pelos trabalhos de restauração, que se arrastavam por causa da falta de verbas. Era preciso completar o orçamento de 80 milhões de euros. Mas o político disse que não havia verba e determinou que os empreiteiros economizassem recursos e seguissem em marcha lenta. E foi neste contexto que o incêndio, sem intenção criminosa, levou embora tesouros materiais e imateriais guardados por séculos. Agora o custo para reerguê-la atinge bilhões de euros.

A igreja começou a ser construída em 1163, ainda nos moldes de uma catedral românica, e foi finalizada 180 anos depois, quando já apresentava as características hoje conhecidas. Ela recebe, por ano, 13 milhões de visitantes, mais do que o dobro do total anual registrado no Brasil. Entre suas atrações mais famosas estão os vitrais que adornam a fachada ocidental e as laterais do prédio (feitos para que o interior da igreja ficasse melhor iluminado). Um dos mais belos, a Rosácea do Meio-Dia, está a salvo. Outros tiveram peças danificadas por causa do calor. A Pietà, escultura da Virgem Maria segurando o corpo de Jesus em frente ao altar, a porta que representa o Juízo Final, e três órgãos também escaparam do fogo. O maior dos teclados foi instalado entre os séculos XV e XVII e foi ao som de suas notas que Napoleão coroou-se imperador, em 1804.

As principais perdas concentraram-se na torre e no teto. A Flecha, como é chamada, estava a 93 metros acima do solo. Sua construção foi concebida para simbolizar a conexão do homem com Deus. Na sua estrutura estava abrigada a escultura de um galo, o símbolo da França, dentro do qual conservavam-se os restos mortais dos padroeiros de Paris, Santa Genoveva e São Dionísio, um pedaço da cruz onde Jesus foi crucificado e um dos cravos usados para pregá-lo. A escultura do galo foi achada entre os escombros no dia seguinte por um voluntário, mas até a quinta-feira 18 não se sabia se as relíquias seriam recuperadas. O que se perdeu foi a base de madeira que sustentava o telhado, feita com 1,3 mil vigas de carvalho entrelaçadas ao modo medieval.

DESPOJOS Os escombros bloquearam totalmente o caminho da nave ao altar (Crédito:AFP)

Altar de memórias

Notre-Dame é testemunha de momentos importantes da história. Passaram por ali 27 monarcas franceses. Guerras e revoluções transformaram o mundo enquanto a edificação permanecia soberana na Île de la Cité, a faixa de terra incrustada em uma bifurcação do rio Sena. Várias vezes esteve sob ameaça. Foi saqueada durante a Revolução Francesa, cujos princípios iluministas ajudaram a moldar o pensamento moderno. À época, uma população faminta viu na catedral a representação dos privilégios dos quais o clero usufruía. Na Segunda Guerra Mundial, seus sinos anunciaram a libertação de Paris do jugo nazista, em abril de 1944.

O encantamento pela catedral atraiu os artistas. Muitos inspiraram-se em sua beleza para criar obras-primas, como o romance “Notre-Dame de Paris” (1831), de Victor Hugo. O escritor amava o lugar. A obra narra a história de Quasímodo, um corcunda que vive recluso na igreja. Por meio do personagem, Hugo descreve detalhes da edificação e destaca pontos nos quais o tempo já fazia estragos: “Na face dessa velha rainha das nossas catedrais, ao lado de uma ruga, encontra-se sempre uma cicatriz”, escreveu.

A comoção mundial provocada pelo incêndio transcende explicações que se limitam ao valor turístico ou histórico. A Notre-Dame é o símbolo da civilização ocidental. Paris era apenas uma vila à beira do Sena quando começou a ser erguida pelos aldeões. Durante quase dois séculos, gerações contribuíram para erguer cada pedaço da igreja, criando uma epopeia fascinante sobre como boa parte da humanidade pavimentou, passo a passo, a transição da barbárie para a civilização. “Ela é um belo exemplo de heranças tangíveis e não tangíveis”, disse à ISTOÉ Jose Gonzales Zarandona, pesquisador do Instituto Alfred Deakin para Cidadania e Globalização, na Austrália. “Embora as pessoas amem a edificação por sua beleza, elas também a admiram porque a catedral as representa como franceses, europeus e cristãos, independentemente da origem”, completa Zarandona. “Em tudo nela há uma correspondência espiritual”, diz João Braga, professor de história da Faap (SP). Além disso, o respeito à catedral está acima das religiões.

“A Catedral é o epicentro da história da humanidade. Vamos reconstruí-la” Emmanuel Macron, presidente da França (Crédito:Philippe Wojazer)

Seu projeto arquitetônico é preciso ao materializar o momento histórico de transformação pela qual passava a sociedade europeia. A construção é um dos exemplos mais lindos da arquitetura gótica, que marcou a Idade Média (476-1453). Foi um tempo em que o homem construiu obras para louvar a grandiosidade de Deus. Por esta razão, nas edificações cristãs da época, o ser humano é lembrado de sua pequenez diante da magnitude divina. Algumas catedrais construídas no mesmo período chegam a ser escuras e até assustadoras. Notre-Dame não transmite tais sensações. Dentro dela, qualquer um sente-se acolhido e não oprimido. Talvez por isto, enquanto as chamas consumiam a igreja, uma multidão lotou os arredores chorando, cantando, em um estupor místico jamais visto na história.

Para os parisienses, a tragédia da Notre-Dame soou como catarse em um momento de conturbação social e urbana pelo qual passa a capital. Nunca houve tantos sem-teto na cidade, o medo de atentados terroristas permanece e, desde outubro de 2018, Paris é palco de manifestações dos Coletes Amarelos, movimento que protesta contra o aumento no custo de vida.

TRISTEZA Pessoas de todos credos unidas pela dor: orações (Crédito:ERIC FEFERBERG)

No mesmo dia do incêndio, o presidente francês Emmanuel Macron fez um apelo em favor da reconstrução do templo. “Nós a reconstruiremos juntos”, disse. Um dia depois, as doações para a reconstrução da parte atingida haviam atingido a cifra de R$ 2,6 bilhões. Com vistas para 2024, quando Paris sediará os Jogos Olímpicos, Macron prometeu a recuperação concluída em cinco anos. Os especialistas, no entanto, acham o prazo impossível e apostam em dez anos, no mínimo.

É comum que as pessoas se perguntem se a restauração de um monumento não roube sua alma, uma vez que o original foi perdido. No caso de Notre-Dame, dificilmente isso irá acontecer. “Se a nova edificação for feita com amor, e acredito que será, a catedral manterá seu ambiente e seu espírito”, afirmou à ISTOÉ Claire Smith, professora de arqueologia do Colégio de Humanidades, Artes e Ciências Sociais da Flinders University, Austrália. A história produz ruínas — e ­a resposta mais digna a elas é reconstruir.