David Remnick assistia à CNN na casa dos sogros, no subúrbio de Nova York, em 19 de agosto de 1991, quando viu tanques de guerra soviéticos passarem pela rua de Moscou na qual ele viveu durante os quatro anos anteriores. Correspondente do “Washignton Post”, ele havia acompanhado de perto os desdobramentos da perestroika, movimento de abertura iniciado em 1985 por Mikhail Gorbatchóv (segundo a grafia usada por Remnick), e decidira regressar aos Estados Unidos após ter publicado uma difícil entrevista com um confidente do então homem forte do Kremlin. Apesar de sua fonte afirmar que o Partido Comunista e a KGB orquestravam um golpe de Estado, o jornalista tinha razões para acreditar que aquilo era apenas paranoia. Ao ver o Exército Vermelho em marcha, Remnick voltou a Moscou. Chegou a tempo de presenciar os últimos suspiros do “putch”, como foi chamada a tentativa de destituir Gorbatchóv — antes do desfecho, ele chegou a ser feito refém em sua casa de praia na Criméia. Apesar do fracasso do golpe, Remnick permaneceu ali tempo suficiente para ver a antes poderosa e temida União Soviética “se dissolver como cubinhos de açúcar em chá fervente”.

DO KREMLIN À CASA BRANCA Vencedor do Prêmio Pulitzer em 1994 por “O Túmulo de Lênin”, David Romnick é desde 1998 editor da revista “Thje New Yorker”. Em 2010, publicou “A Ponte — Vida e Ascensão de Barack Obama”
DO KREMLIN À CASA BRANCA Vencedor do Prêmio Pulitzer em 1994 por “O Túmulo de Lênin”, David Romnick é desde 1998 editor da revista “Thje New Yorker”. Em 2010, publicou “A Ponte — Vida e Ascensão de Barack Obama”

A imagem é um exemplo da prosa elegante que o autor emprega nas 730 páginas de “O Túmulo de Lênin”, livro publicado em 1993 e relançado no ensejo dos 100 anos da Revolução Russa pela Companhia das Letras, com tradução de José Geraldo Couto. Escrito por um jornalista com talento incomum para perseguir e contar boas histórias, é provavelmente a obra mais importante até hoje sobre a construção, o declínio e o colapso de um gigante que ameaçou o mundo por várias décadas. Mais que a história da União Soviética e a derrocada de seu império feito de ilusões, o livro retrata com precisão os bastidores do poder desde a revolução de outubro de 1917 até o inexorável fim do comunismo.

Neto de judeus russos que conseguiram fugir para a América, Remnick voltou à terra de seus ancestrais dois meses depois de um discurso histórico em que Gorbatchóv celebrava os 70 anos do regime socialista e, ao mesmo tempo, admitia as arbitrariedades e crimes baseados no abuso do poder durante o governo de Joseph Stálin — o que ele chamou de “amarga verdade”. A fala oficializou a glasnost, palavra russa para transparência, e parecia conduzir a URSS à democracia. Remnick logo percebeu que a “demokratia” que emergiu na Rússia da década de 1990 logo daria origem à “dermokratia” (em bom português, “merdocracia”). Explicar por que a Rússia e suas 14 outras ex-repúblicas soviéticas não conseguiram fazer sua sonhada transição para a liberdade é um dos méritos do livro. Dividido em cinco partes, ele torna ainda mais didática a compreensão do que o autor chama de “o mais colossal e duradouro equívoco do mundo”, e de que forma esse Estado sobreviveu cambaleante após a morte de Stálin, em 1953.

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OBRA DEFINITIVA O livro que explica os bastidores do poder na URSS: história bem contada

“Homo sovieticus”

Manipulador totalitário capaz de reescrever a história a seu gosto, Stálin foi um assassino brutal que deixou um rastro de dezenas de milhões de cadáveres e criou uma ordem social perversa. “Em 1934, o Comitê Geral do Partido Comunista emitiu um decreto determinando que uma versão ideológica estrita da história se tornasse doutrina em todos os livros didáticos, escolas, universidades e institutos. O próprio Stálin supervisionou pessoalmente a escrita”, afirma Remnick. “Em seu primeiro ano do curso de medicina, os estudantes eram informados de que havia duas espécies de seres humanos: Homo sapiens e Homo sovieticus”.

Quando decidiu substituir essa “história oficial” odiosa por outra que contasse a verdade, Gorbatchóv estava imbuído do nobre ideal de “reformar o socialismo”. Para isso, recorreu a outro mito, Vladimir Lênin (1870-1924), cujo corpo permanece embalsamado na Praça Vermelha. Se a tentativa de ressuscitar o pai da revolução serviu para confortar a consciência de uma nação que cometeu as maiores atrocidades em nome de um sonho impossível, seus desdobramentos históricos mostraram que
ela fracassou em seu objetivo maior: preservar o império soviético.

Uma queda anunciada

“Nos anos que se seguiram à morte de Stálin, o Estado era um velho tirano cambaleando pelas esquinas, com catarata e pedras nos rins, os músculos flácidos”

“Quando Gorbatchóv chegou ao Kremlin viu que a placa com seu nome já tinha sido arrancada da parede. ‘Yeltin, B. N.’ reluzia metalicamente em seu lugar”