Transações econômicas entram em choque com concorrência de sistemas e valores humanistas. Berlim se encontra entre dois fronts: de um lado o mais importante parceiro comercial, do outro o mais poderoso aliado.Quem quiser se informar sobre a política de Berlim para a China deve observar o curso da fragata Bayern, das Forças Armadas da Alemanha. Ele corresponde aproximadamente ao curso do país em relação a Pequim: apoio de grande peso simbólico à democracia e ao Estado de Direito, ao mesmo tempo que se evita qualquer provocação ao mais importante parceiro comercial.

Em 2 de agosto, o navio de guerra alemão partiu em direção ao Indo-Pacífico, numa viagem por águas politicamente minadas. Sem mencionar diretamente a China, na cerimônia de despedida a ministra da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer, explicou o sentido da missão: a Alemanha quer “que o direito vigente seja respeitado; vias marítimas sejam transitáveis sem restrições; sociedades abertas, protegidas; e que o comércio transcorra segundo regras justas”.

No entanto a fragata passará a uma distância segura dos territórios reivindicados por Pequim nas águas do Mar da China Meridional e de Taiwan. A Alemanha não quer o confronto, esclarece o inspetor da Marinha, almirante Kay-Achim Schönbach. “Vamos utilizar as rotas comerciais usuais.”

Falando à DW, o cientista político berlinense Eberhard Sandschneider, especialista em assuntos chineses, reage com escárnio a essa política meramente simbólica: “Não vai mudar nada nos conflitos do espaço indo-pacífico. A situação lá é séria e tensa demais, e agora um grupo folclórico alemão dá uma passadinha para distrair os americanos e chineses.”

Interesses sobretudo econômicos

Há muito que Berlim se equilibra entre valores e interesses. Sobretudo econômicos: desde 2015 a China é o mais importante parceiro comercial da Alemanha, com as 30 empresas reunidas no índice DAX, da Bolsa de Valores alemã, obtendo, em média, 15% de seu faturamento na nação asiática.

“A China vai continuar sendo a locomotiva da economia mundial”, avalia Jörg Wuttke, presidente da Câmara Europeia de Comércio na China. “Partimos do princípio que nos próximos dez anos ela representará 30% do crescimento global.”

Essa constelação impõe a questão: “Como lidar com um país que é a maior economia do mundo? E que ao mesmo tempo se tornou politicamente mais autoritário, e nem de longe se alinha ao nosso sistema e aos nossos valores?”

Nos 16 anos de chefia de governo de Angela Merkel, Berlim e Pequim se aproximaram, e as relações foram elevadas à categoria de “parceria estratégica abrangente”. Até porque nenhum dos grandes problemas da humanidade – como mudança climática ou desarmamento – pode ser resolvido sem a China.

Há dez anos essas relações bilaterais são ainda mais enobrecidas pelas consultações governamentais conjuntas. As mais recentes transcorreram no fim de abril, devido à pandemia de covid-19 em esquema apenas virtual – e em clima sensivelmente mais frio. Isso embora a União Europeia, após anos de negociações com Pequim, ter conseguido concluir o Acordo Global sobre Investimentos (CAI, na sigla em inglês) em dezembro último, quando a Alemanha estava na presidência rotativa do Conselho Europeu.

Mas aí estão a perseguição impiedosa da minoria uigur na região autônoma de Xinjiang; a repressão ao movimento pró-democracia em Hong Kong; a agressividade chinesa no Mar da China Meridional; os gestos de ameaça em direção a Taiwan. Portanto o material para conflitos com Pequim cresce.

O sinal mais visível disso foi quando, em março, pela primeira vez desde 1989, a UE impôs sanções ao país por violações dos direitos humanos dos uigures. Em represália os chineses sancionaram cientistas e deputados do Parlamento Europeu. O órgão legislativo da UE respondeu a essa tentativa de intimidação em maio, congelando a ratificação do CAI.

Autocracia de êxito

Já há algum tempo vem mudando a visão que se tem da nação asiática e seu milagre econômico. Em seu panorama estratégico de março de 2019, a Comissão Europeia descreve a China não só como parceira de cooperação e concorrente, mas, expressamente, como rival sistêmica, além de protagonista-chave global e principal líder tecnológico.

O postulado de que só democracias e economias de mercado são capazes de garantir bem-estar para uma grande parte de sua população há muito era considerado indiscutível no Ocidente. Mas a China mostrou como, numa autocracia comunista, centenas de milhões passaram da pobreza absoluta à classe média.

“Por isso a China parece muito atraente para muitos autocratas do mundo”, explica o diplomata Heinrich Kreft, diretor do Centro de Diplomacia da Universidade Andrássy, em Budapeste. “Nós estamos cientes de que hoje ela é uma protagonista política extremamente presente, no âmbito global”, também devido à iniciativa de infraestrutura Nova Rota da Seda (ou Belt and Road Initiative – BRI). “Assim, nos fim das contas, todas as nossas relações internacionais têm um aspecto ligado à China.”

Contra a hegemonia americana

Na qualidade de protagonista global, Pequim não mais simplesmente se adapta às regras moldadas pelo Ocidente, observa o sinólogo Sandschneider: “Os chineses fazem as suas próprias regras. [O presidente] Xi Jinping é responsável por seu país e sua própria ambição política, mas não pelas expectativas de americanos ou europeus.”

Isso, embora, ao ver de Kreft, o país não rechace inteiramente a ordem internacional vigente. “A China tenta, por exemplo, muito estrategicamente praticar política de pessoal nas organizações internacionais. Em consequência, para alguns é muito difícil fazer críticas à China. Onde não consegue penetrar com sua política de pessoal – como, por exemplo, no Banco Mundial ou no Fundo Monetário Interacional (FMI) –, ela cria suas próprias instituições, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB).”

Esse roteiro persegue as ambiciosas metas formuladas pelo chefe de Estado e Partido, Xi Jinping: até o centenário da República Popular da China, em 2049, o país deverá ter se tornado uma potência socialista madura, moderna, capaz de ditar e mudar regras, na vanguarda tecnológica e econômica global. Desse modo, o país pretende estar de volta ao centro da ordem mundial, confirma o sinólogo Heilmann. “E isso, é claro, entra em conflito com o poder hegemônico exercido até agora pelos Estados Unidos.”

Em julho, na influente revista Foreign Affairs, o presidente do Instituto de Estudos Internacionais e Estratégicos da Universidade de Pequim, Wang Jisi, descreveu esse conflito: “Os EUA e a China se encontram numa competição que poderá resultar mais duradoura, abrangente e intensa do que qualquer outra na história moderna, inclusive a Guerra Fria”.

O dilema alemão é que essa luta se trava justamente entre seu mais poderoso aliado político e seu mais importante parceiro econômico, e Berlim ameaça ficar entre os dois fronts, sobretudo no tocante à tecnologia. “Os EUA querem impedir por todos os meios que a China os ultrapassem nos setores-chave tecnológicos”, frisa o especialista em assuntos americanos Josef Braml.

Segundo ele, as capacidades tecnológicas chinesas teriam provocado um choque em Washington, comparável ao lançamento do Sputnilk 1 pela União Soviética em 1957, como primeiro satélite do mundo. “Assustados, agora os EUA querem impedir a modernização econômica e militar da China. Por isso apostam numa estratégia de desacoplamento econômico, sem considerar os custos para a Europa.”

Huawei, o grande pomo da discórdia

O pivô da luta pela primazia tecnológica é a Huawei, conglomerado chinês que conta entre as empresas líderes na construção de redes de telefonia móvel 5G, detendo importantes patentes. “A Huawei é a figura de proa global para a força de inovação chinesa e também para a política tecnológica do país”, resume o sinólogo Heilmann. “Está absolutamente claro que, no momento, os EUA empregam todos os meios para dar fim à história de sucesso da Huawei.”

Na disputa pelos padrões tecnológicos do futuro, os americanos exercem forte pressão para que seus aliados excluam a Huawei do desenvolvimento da rede 5G, sob o argumento principal de que as redes seriam inseguras, possivelmente contendo “portas do fundo” por onde os serviços secretos chineses teriam acesso aos dados dos usuários.

Os EUA não apresentaram provas contundentes para alicerçar tais assertivas. Em vez disso, no princípio de 2019, diplomatas americanos ameaçaram a Alemanha com a suspensão da cooperação entre os serviços secretos caso a empresa chinesa seja incluída na expansão 5G.

Num parecer técnico apresentado em março ao Bundestag (parlamento alemão), quatro peritos da associação europeia de hackers Chaos Computer Club (CCC) chegaram a uma conclusão sumária: a discussão sobre o papel das empresas de equipamento para redes “é conduzida em todo o mundo, desde 2018, de maneira emocional e basicamente sem qualquer consideração dos fatos”.

Berlim ainda não tomou nenhuma decisão final sobre o papel da Huawei nas futuras redes de telefonia móvel do país. A Segunda Lei para Incremento da Segurança das Redes de Tecnologia de Informação, aprovada no fim de abril, se move no típico equilibrismo da Alemanha: a participação da Huawei na expansão da rede 5G não será bloqueada, mas lhe serão impostas barreiras altas.

Escolha dura: China ou EUA?

Com essa postura de tentar agradar a ambos os lados, a Alemanha não conseguirá se manter fora da controvérsia no longo prazo, avalia o especialista Braml: “Na concorrência por esferas de influência tecnológicas-políticas, os EUA aumentarão a pressão sobre os Estados terceiros, colocando-os diante da decisão de ou fazer negócios com eles ou com a China.”

Não muito tempo atrás, entrelaçamento econômico e divisão de trabalho global eram tidos como garantia de prosperidade e paz. Esses tempos aparentemente se foram: no raciocínio geoeconômico das potências mundiais, hoje eles são considerados riscos.

Como nação econômica, a Alemanha terá que encontrar uma resposta para essa nova realidade. E enviar a fragata Bayern para o Indo-Pacífico não bastará.