Mais uma vez a saúde mental é tema de debate no Brasil; mais uma vez fica clara a precariedade, o preconceito e desdém com que os governantes sempre abordam essa questão – principalmente porque ela não rende voto.
O Conselho Nacional de Justiça fixou o final de maio de 2024 como data-limite para que todos os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico estejam desativados. Faz cumprir, assim, a lei antimanicomial aprovada em 2001.
Nesses hospitais, também chamados de manicômios, estão recolhidas as pessoas que possuem doenças ou transtornos mentais e que tenham cometidos atos antijurídicos sem compreensão da ilegalidade da ação praticada.

Em episódios assim, que trágica e tristemente navegam de um mero furto até o parricídio e infanticídio, os juízes, após comprovação médica de que a pessoa de fato não sabe o que fez – ou, ainda que saiba, não é capaz de conter o seu impulso -, não sentenciam o acusado. Em lugar de sentença penal condenatória, os magistrados determinam por meio de medida de segurança a internação do autor do ato delituoso nos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Ou seja: em não podendo a antijuridicidade ser imputada ao autor, ele torna-se irresponsável.

Chegar a um desses hospitais significa pisar o final da linha – a fronteira para a vida desprovida da própria vida. Em seus portões gradeados poderia estar escrita a imortal frase que o poeta Dante Alighieri colocou no portal do inferno em A Divina Comédia: Lasciate Ogni Speranza, Voi Chi Entrate.

Por melhor que seja a direção da instituição, assim como o seu corpo técnico, faltam-lhes os mais básicos recursos para que um ser humano seja tratado com dignidade.

É aqui que mora o descaso do Estado.

Gente muito pobre. Pretas e pretos. Desdentadas e desdentados. Trêmulas e trêmulos. Ensimesmadas e ensimesmados. Calmas e calmos. Agressivas e agressivos. Abandonadas e abandonados pela família. Dependentes de drogas. Desassistidas e desassistidos da sorte. Um eterno falar sozinho — eis apenas alguns traços do perfil daqueles que são encaminhados para os manicômios judiciários.

É uma clara declaração de estigma. O tratamento clínico que o Estado é constitucionalmente obrigado a dar, isso é mera ilusão. Não sem razão, portanto, determina o CNJ o fechamento dessas instituições oficiais, totais e totalizantes, nas palavras do filósofo e historiador das ideias Michel Foucault.

Há, no entanto, um complicador na decisão. Para aonde irão esses pacientes? Em primeiro lugar, estejamos no campo da ética ou da medicina, é necessário pensar prioritariamente na segurança dos próprios doentes. Qual seria esse lugar?

Determina a lei e o bom senso que sejam acolhidos pela Rede de Atendimento Psicossocial (Raps). Muitas de suas unidades não possuem, no entanto, hospitais em que o paciente possa permanecer durante a noite. Para aonde ele vai? Para a sarjeta?

A Raps integra o Sistema Único de Saúde. Pois bem, é o próprio Sistema Único de Saúde que afirma não ter condições de acolher todos os enfermos colocados sob a custódia do Estado por meio de medida de segurança.
Um fato está dado: não podem esses enfermos seguirem no inferno em que estão. Outro fato, também está dado: não têm esses enfermos locais adequados para serem submetidos a tratamento. Todos os governantes que deixaram a questão da saúde mental chegar ao ponto que chegou deveriam ser processados, condenados e presos.

“O grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela maneira como ela trata os seus prisioneiros e os seus enfermos mentais”, eis a frase que, atribuída ao escritor russo Fiódor Dostoievski, explica o Brasil. Podemos também recorrer à frase do dramaturgo Oduwaldo Vianna Filha, um dos mais brilhantes do País, e então perguntar: para o impasse criado acerca da saúde mental, “a saída, onde fica a saída?”.