Não é comum, mas acontece de o autor de uma tese de mestrado ou doutorado esquecer de colocar entre aspas uma citação ou se confundir em referências – teses geralmente são calhamaços e a bibliografia é infindável. Isso é uma coisa. Outra coisa, e bem diferente, é o que vem ocorrendo no País com políticos e ministros copiando descaradamente obras intelectuais sem mencionar a autoria. Mais descaradamente, ainda, mentem sobre títulos acadêmicos que teriam conquistados nas mais prestigiadas universidades do mundo sem sequer terem passado pela porta. Todos recorrem à igual desculpa: não fiz por interesse. Há um histórico ensinamento: “o desinteresse encobre diversos falsos personagens, inclusive o do interesse”. A frase que se acaba de citar, aspeada, é do duque francês La Rochefoucauld. Se tivesse sido utilizada por Carlos Alberto Decotelli viria sem aspas e sem o nome do verdadeiro autor. “Existem diversos códigos de conduta, ética e boas práticas científicas que pesquisadores têm de seguir”, diz o reitor da Unicamp, Marcelo Knobel.

“Existem diversos códigos de conduta, ética e boas práticas científicas que pesquisadores têm de seguir” Marcelo Knobel, reitor da Unicamp

Foi assim que, mentindo, Decotelli deixou o Ministério da Educação na terça-feira 30 sem sequer acomodar-se em seu gabinte — virou ex antes da posse (o nome mais cotado agora é o do reitor do ITA, Anderson Correia). Decotelli saiu, mas a nós fica a perplexidade: como alguém pode assumir uma pasta mentindo na própria área de sua atuação? Para quem seria ministro da Educação, mentir no campo educacional é doido e doído demais. E vale lembrar que dois ex-ministros, Ricardo Vélez Rodrigues e Abraham Weintraub, também tinham currículos pouco ortodoxos no quesito veracidade. “A escolha das mentiras no currículo mostra uma falta de percepção do mundo. É muito fácil descobrir enganações acadêmicas”, diz Mozart Neves Ramos, professor catedrático da USP. As mentiras compulsivas de Decotelli são assombrosas. Ele se disse oficial da Marinha: a Marinha negou. Ele se disse mestre pela FGV: não o é porque copiou trechos de outras dissertações. Ele se disse professor da mesma FGV. Corte: a faculdade desmentiu, só que dessa vez foi ela que faltou com a verdade. Decotelli exibiu seis prêmios entregues a ele pela FGV como professor. A versão de Decotelli recebeu o abalizado endosso até de Elizabeth Guedes, irmã do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ou seja: nisso ele foi sincero. O rosário do ex-ministro, porém, continuou. Ele se disse doutor pela Universidade Nacional de Rosario, na Argentina: sequer chegou a fazer a defesa oral. Ele se disse pós-doutor pela Bergische Universität Wuppertal, na Alemanha: não o é porque foi desmentido pela própria instituição. “É algo da cultura brasileira querer obter ganhos e vantagens sem fazer o menor esforço, apoderar-se de algo que não se criou ou iludir o próximo”, diz o neuropsicólogo pela USP, Mauricio Daher Filho.

Saída relâmpago

Diversos movimentos negros estão considerando que o presidente só deixou de nomear Donatelli porque ele é, justamente, negro. Ou seja: Bolsonaro, segundo eles, comete um ato racista porque não exonerou, por exemplo, Ricardo Salles, branco e ministro do Meio Ambiente, nem Damares Alves, branca e ministra dos Direitos Humanos, da Mulher e da Família. Salles se declarou mestre em Direito Público pelos EUA. É pura inverdade. Quanto a Damares, ela foi motivo até de críticas por religiosos: disse ser mestre em direito constitucional, direito da família e em educação. Quando apanhada na mentira, declarou que “quem lê a bíblia é sempre mestre”. Na mesma linha, pode-se indagar por que Dima Rousseff não perdeu a diplomação de presidente da República ao falsear que era doutora pela Unicamp? Por que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, segue no cargo, mesmo tendo mentido que cursou parte dos créditos de seu doutorado em Harvard sem o menor escrúpulo? Na verdade, o fato de esses personagens não terem sido punidos não significa que a impunidade deva seguir. O que os movimentos antirracistas pleiteiam é equidade de tratamento.

Antes que se diga que Bolsonaro foi iludido por Decotelli, é preciso lembrar de outra atitude desabonadora do agora ex-ministro e da qual o presidente tinha conhecimento. Quando presidiu o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, ele autorizou licitação irregular de R$ 3 bilhões: uma escola em Minas Gerais receberia 30 mil laptops, ao mesmo tempo que contava somente com 255 alunos. Isso mostra, mais uma vez, a incapacidade de Bolsonaro em preencher cargos de confiança. Escolhe mal e, ao ser duramente criticado, volta atrás. Dessa vez, inaugurou uma nova função na República: os ministros relâmpagos. Foi assim com Regina Duarte, com Nelson Teich e, agora, com Decotelli. Tudo isso em menos de dois anos à frente do Planalto. Se a troca continuar no mesmo ritmo, haverá um novo recorde, só antes atingido por Dilma. Uma revolução ministerial a cada semestre. Toda essa ciranda faz com que o ensinamento da cientista política Hannah Arendt seja mais necessário que nunca: “a escolha do que se julga um ‘mal menor’ sempre é, ainda assim, a escolha de um mal”.

“Está na cultura brasileira querer obter ganhos sem fazer esforço e apoderar-se de algo que não criou” Mauricio Daher Filho, neuropsicólogo e especialista em terapia cognitiva pela USP