Assim como vemos com naturalidade, nos dias atuais, sondas e satélites serem lançados ao espaço, há quinhentos anos os europeus acostumaram-se com expedições que desafiavam os mares em busca de riquezas, especiarias e novas rotas comerciais. Uma delas foi involuntariamente definitiva para a história do planeta, da mesma forma que se pode dizer que definitivo para todos os tempos tornou-se o fato de o homem pisar a Lua — aliás, os astronautas americanos protagonistas desse feito de meio século tinham como ídolo um navegador de meio milênio.

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Trata-se do visionário e destemido fidalgo português Fernão de Magalhães, que comandou no século 16 uma frota de cinco barcos com duzentos e cinquenta homens numa fenomenal e desesperadora empreitada sob o signo de infindáveis tempestades, muita fome e violentas rebeliões de seus comandados. Magalhães queria tão somente abrir para Portugal um novo caminho marítimo até as Ilhas Molucas, hoje Indonésia. Acabou fazendo com que sua pequena esquadra se tornasse a responsável pela primeira circunavegação, a descoberta de mares até então inimagináveis e a comprovação de que a Terra é redonda.

ESTREITO DE MAGALHÃES Passagem descoberta por Fernão de Magalhães, no século 16, que une em seus seiscentos quilômetros de extensão os oceanos Atlântico e Pacífico

Eis um parâmetro para se mensurar as vidas que custaram essa jornada: quando a expedição retornou ao porto espanhol de Sanlúcar, em 1522, após três anos no mar, a tripulação contava apenas com dezoito sobreviventes — e o próprio Fernão de Magalhães já era um corpo lançado às águas, assassinado que fora quando entrou em conflito com a população local nas Filipinas. Mas vamos, então, ao início dessa aventura. Portugal já controlava a rota marítima para o leste, que passava pelo Cabo da Boa Esperança, no extremo sul da África.

Magalhães lançou então a si e ao rei Manuel I o desafio de viajar pela rota oposta, ou seja, pelo oeste, contornando a América do Sul. Acomodado com o que já possuía de domínios no mar, Manuel I desprezou a ideia. Bastou isso para que Magalhães imediatamente procurasse o rei da Espanha, Carlos I, que delirou diante da possibilidade de dominar o continente asiático chegando às Ilhas Molucas. Era o ano de 1519 e, assim, a expedição partiu, levando um escritor italiano que pagou para embarcar, sobreviveu a todas as agruras e tornou-se o principal relator a bordo. Seu nome: Antonio Pigaffeta.

De seu relato acerbo e realista, às vezes realista até demais, consta que Magalhães não conseguiu encontrar facilmente a passagem natural que imaginava existir, ligando o Oceano Atlântico, já conhecido, a algum mar jamais navegado, para então chegar à Ásia pelo trajeto inverso da rota já dominada pela corte portuguesa. Veio o inverno, o comandate decidiu que todos ancorariam onde atualmente é o sul da Argentina. A tripulação dormia congelada nos conveses das embarcações, os alimentos minguavam, a fome e as doenças aumentavam.

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Boa parte dos marujos, formada sobretudo por espanhóis indóceis ao comandante português, decidiu se sublevar. Derrotados, os líderes da rebelição acabaram esquartejados por Magalhães. Uma nau afundou, outra, justamente a que ainda carregava relativa quantidade de comida, desertou. Passado o inverno, no entanto, a sonhada passagem natural revelou-se ao sul mesmo da Argentina. Foi batizada na hora, merecidamente, de “Estreito de Magalhães”.

DONOS DOS MARES E DO MUNDO Os reis Carlos I, da Espanha (ao lado), e Manuel I, de Portugal: rotas opostas em busca de riqueza, conquistas e raras especiarias

Vencidos seus seiscentos quilômetros de extensão, estreou nos olhos de todos um mar sem fim. Magalhães sonhou que agora tudo transcorreria em paz e o chamou de “Mare Pacificum” — o imenso Oceano Pacífico, que na verdade não lhe trouxe paz alguma. Eis um trecho do diário de Pigaffeta: “(…) comemos ratos, comemos poeira misturada a minhocas (…) bebíamos água amarelada e podre (…) também comemos o couro que que cobria parte das embarcações (…)”. Se Magalhães acertou na existência de um estreito geográfico unindo naturalmemnte dois mares, errou na suposição de que as Molucas pertenciam à Espanha pelo traçado imaginário definido com o Tratado de Tordesilhas, separando o que era de Portugal e o que petencia à Espanha. Ele decide então ir às Filipinas, entra em guerra com nativos e é morto. Tudo isso ocorria em um mundo totalmente desconhecido para qualquer europeu. Era o absoluto nada amedrontador cercado de mar, mar, mar, mar…

Loucos à deriva

João Paulo de Oliveira e Costa, historiador português: “Há similaridade entre essa viagem e a ida do homem à lua. Os astronautas falavam de Fernão de Magalhães como um ídolo inspirador” (Crédito:Divulgação)

Surpreendentemente, o arremedo do que fora uma expedição, agora liderada pelo espanhol Juan Sebastián Elcano, conseguiu alcançar as cobiçadas Ilhas Molucas. Por elas, Fernão de Magalhães e duzentos e trinta e dois homens morreram, alguns vítimas de canibalismo; por elas, ensandeceu-se à deriva nas águas; por elas, gengivas viraram hemorragias devido ao escorbuto; por elas, Fernão de Magalhães teve seu corpo lançado a tubarões. Para quem queria apenas especiarias asiáticas, o porto seguro das Ilhas Molucas deu muito mais.

Ao cruzar Atlântico e Pacífico na ida e Mar Índico na volta, esse aquático exército de Brancaleone perfez a primeira circunavegação, abriu rotas comerciais que são utilizadas até hoje e dirimiu de vez a dúvida que atormentava filósofos desde a Grécia Antiga: sim, a Terra é redonda. Finalmente, desfez a lenda de que monstros habitavam o Oceano Pacífico. “Há um paralelismo entre essa viagem e a ida do homem à lua”, diz o historiador português João Paulo de Oliveira e Costa. “Os astronautas falavam de Fernão de Magalhães como um ídolo inspirador”.


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