Nos 200 anos de Herman Melville, o mundo ainda reflete como o autor elevou uma simples aventura naval à epopeia trágica “Moby Dick”.

Nos 200 anos de seu nascimento, o escritor americano Herman Melville (1819-1891) ainda desperta fascínio e perplexidade. Fascínio pelo estilo exuberante e visionário da vanguarda do século XX; perplexidade pelo modo como impôs uma força trágica inédita à forma de narrar suas histórias. Para completar o perfil surpreendente, Melville foi um aristocrata protestante e conservador da Nova Inglaterra, de quem ninguém esperaria o estilo culto, perturbador e crítico que atravessou boa parte de
sua obra. Devido a essas características, só foi glorificado após a morte; ainda assim, em parte.

“Escrever para mim é como rachar lenha” Herman Melville, escritor

O reconhecimento póstumo se deu por causa de “Moby Dick, ou A baleia” (1851), que ganha uma nova edição da editora 34, organizada por Bruno Gambarotto, tradutor e autor da tese de doutorado “Modernidade e mistificação em Moby Dick”. Segundo ele, trata-se do primeiro grande romance americano, mas continua atual. “Melville chegou à forma trágica pela epopeia burguesa”, diz. “Com isso, ele denuncia a destruição da vida pela exploração dos recursos por parte dos baleeiros em confronto com a resistência oferecida pela natureza: a baleia.”

Fiasco de vendas

No romance, o marinheiro de primeira viagem Ishmael narra a obsessão alucinada do capitão Ahab, que, no comando do navio baleeiro Pequod, força uma tripulação pacata a combater o gigantesco cachalote Moby Dick, que lhe havia mutilado a perna esquerda em uma expedição anterior. “A cor branca da baleia é a encarnação do mal, do vazio da existência e da inutilidade do trabalho que Ahab visa a destruir”, diz Gambarotto.

Ele explica que extração do óleo de baleia era a principal atividade econômica dos Estados Unidos antes do petróleo, que passou a ser extraído em 1859: “O óleo lubrificava máquinas e iluminava as cidades. Os navios baleeiros enchiam de banha de baleia os porões, onde máquinas processavam o óleo”. Só voltavam à terra, anos depois, carregados com o produto pronto para ser vendido. O animal indomável simboliza o triunfo da natureza sobre a indústria.

Quando o romance foi publicado, Melville já era conhecido como narrador de costumes polinésios como “Typee” (1846) e “Omoo” (1847) e as aventuras marítimas “Mardi” e “Redburn” (1849). Na trilha desses volumes, “Moby Dick” obteve críticas positivas e algum sucesso, em parte pelo tom bombástico, repleto de citações de Shakespeare, que poucos entenderam. A primeira tiragem, de 2.915 exemplares, feita pela impressora Harper & Brothers de Nova York, levou 40 anos para se esgotar. “Os editores cobravam vendas”, afirma. “Mas Melville não fazia concessões ao mercado.”

Apesar de ter vivido 72 anos, dedicou apenas doze à prosa literária, com grande esforço. “Escrever para mim é como rachar lenha”, disse. Seu período fecundo se deu entre 1846 e 1857, com doze títulos, entre novelas, contos e romances. Terminou seus dias fiscalizando a alfândega do porto de Nova York para sustentar a família. Desiludido da ficção, devotava-se a compor poemas.

Muitos de seus livros hoje ignorados mereceriam ser lidos pelo público de língua inglesa e traduzidos para o português, como o romance de ideias “Pierre: or, The Ambiguities (1857) e a narrativa histórica “Israel Potter” (1855). Falta coragem aos editores para lançá-los. É a prova de que a prosa bárbara de Melville ainda causa repulsa no mercado.