A Independência do Brasil, libertando-se e deixando de ser colônia de Portugal, foi Proclamada a Sete de Setembro de 1822, por Dom Pedro, quando príncipe regente – ainda não ostentando, portanto, a distinção em algarismo romano que os reis incorporam a seus nomes. Vamos ao Grito.

Pedro viajara do Rio de Janeiro, sede do governo colonial, a São Paulo, visando acepilhar as arestas entre políticos liberais e conservadores. Obteve relativo sucesso, cresceu em ego, e, ao retornar, ainda em solo paulista, passou na casa de sua amante, Domitila de Castro, a quem dera o título nobiliárquico de Marquesa de Santos. Houve discussão, ela fervendo de ciúme porque Pedro também se relacionava sexualmente com sua irmã, Maria Benedita Canto e Mello. Com o coração apertado ele seguiu viagem, quando, às margens do riacho Ipiranga, também em São Paulo, um mensageiro entregou-lhe missiva assinada pela princesa Leopoldina, sua esposa, e por seu conselheiro político, José Bonifácio de Andrada e Silva. Diziam-lhe na carta que as Cortes Extraordinárias Portuguesas, criadas com a Revolução Liberal da cidade do Porto em 1820, exigiam a sua volta imediata a Portugal. Assim sendo, Leopoldina e Bonifácio aconselhavam-no a declarar o Brasil independente – Declaração de Independência, aliás, que ela até já redigira e assinara. Pedro, agastado, desembainhou a espada e gritou: “Independência ou Morte!”.

As águas do riacho Ipiranga batizaram o Brasil livre. Para tecer a jornada humana, a vida pessoal e emocional mistura-se com a vida social e política. Segundo ensina o universal perscrutador da alma humana Machado de Assis, não há uma grande alegria pública que valha tanto quanto uma pequena alegria particular. Pedro estava sem uma e sem outra. O desentendimento com “Titília” (assim ele chamava Domitila; e ela o apelidara de “Demonão”) exacerbou o seu tédio e isso influenciou no Grito. Mas é óbvio que há um pano de fundo político, e, para entendê-lo, é necessário retroceder no tempo.

Em 1808, Dom João VI e a família real fugiram das tropas de Napoleão e vieram para cá. Com isso passamos a integrar o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Tudo eram flores e licores, até que, em 1820, Dom João teve de regressar porque estourara a já citada Revolução Liberal do Porto. Ele deixou no Brasil feito regente o seu filho mais velho, Pedro de Alcântara (são 18 nomes ao todo), mas os revolucionários portugueses planejaram prender o moço príncipe, levá-lo à metrópole e rebaixar o Brasil novamente a condição extrativista. As elites forçaram então a Proclamação, garantindo o status quo, até porque no Nordeste já se começava a falar em regime republicano. “A cearense Bárbara de Alencar, por exemplo, tomou a Câmara e declarou que estava instaurada a República. Tornou-se a primeira presa política do Brasil”, diz a historiadora Heloisa Starling. A frase “façamos a revolução antes que o povo a faça”, atribuída a Antonio Carlos de Andrada em 1930, colocando Getúlio Vargas no poder e encerrando o reinado de algumas oligarquias advindas do Império, é perfeita para a situação de cerca de um século antes. Ficou assim explicado, em minudências, o papel do establishment na Independência: para as elites era melhor a separação por decreto que a revolução popular republicana.

Veio a realeza do algarismo romano: Pedro tornou-se Pedro I. Leopoldina seguiu tendo papel decisivo, em seu gabinete, assim como outras mulheres e escravos que enfrentaram nos campos de batalha as tropas lusitanas nas Guerras da Independência – o processo não foi pacífico. A sóror Joana Angélica perdeu a vida à baioneta; a escrava Maria Felipa incendiou quarenta embarcações portuguesas; Maria Quitéria vestiu-se de homem (trajes militares do cunhado) para guerrear. Pedro I, verdade seja dita, amava o Brasil. E amava Domitila, a ponto de lhe perdoar o fato de ter contratado gente para matar a própria irmã Maria Benedita – errou-se o tiro na Ladeira da Glória e a moça saiu incólume. Leopoldina e Bonifácio tinham um projeto liberal para o Brasil, Pedro não: era sentimental demais na paixão, vulnerável demais às mulheres, autoritário demais na política.

O seu reinado foi turbulento. Morreu Leopoldina e ele casou-se com Amélia de Leuchtenberg. Muitas brigas. Investido do Poder Moderador, dissolveu a Constituinte, trombando com os liberais. Em 1826 faleceu em Portugal Dom João VI e as elites daqui temeram que agora, feito rei também dos portugueses, Pedro as colocasse em segundo plano. Por último, vieram a crise econômica de 1829 e a falência do Banco do Brasil. Pedro abdicou do trono a 7 de abril de 1831. Saiu do Brasil vaiado e apedrejado pela população, e retornou a Portugal onde morreu, três anos depois, de grave infecção decorrente de doença sexualmente transmissível e de tuberculose. O seu coração guarda-se na cidade do Porto, o restante de seu corpo está em solo brasileiro. Era seu fado amar, reinar e descansar nas duas pátrias.

O triste adeus ao Brasil
O filme A Viagem de Pedro, de Laís Bodansky, narra sua volta a Portugal

Felipe Machado

SOB PEDRAS Cauã Raymond como Dom Pedro I: enxotado pelos brasileiros devido a sua ligação com a Coroa, era chamado de traidor pelos conterrâneos portugueses (Crédito:Fabio Braga)

No momento em que o coração de Dom Pedro I volta ao Brasil com honras de chefe de Estado, fica até difícil imaginar que o herói da Independência deixou o País a pedradas, sob vaias e críticas dos brasileiros que ajudou a libertar. Escrito e dirigido por Laís Bodanzky, A Viagem de Pedro conta justamente essa história. Ao contrário do imponente personagem histórico que estamos acostumados a ver no quadro de Pedro Américo, o Dom Pedro I do filme é retratado como um homem fragilizado, sensível e com problemas de saúde. A produção se passa em 1831, nove anos após o Grito do Ipiranga. Ele volta a Europa para lutar pelo trono de Portugal contra o irmão Miguel. Vive um dilema, uma vez que é visto como colonizador português no Brasil, e “brasileiro demais” pelos conterrâneos, que o julgam um traidor. O filme se passa praticamente na embarcação, em alto mar, onde aflora o contraste entre os luxos da família real e a simplicidade do restante da tripulação. Com boa atuação de Cauã Raymond no papel principal, o longa chega aos cinemas em 1º de setembro. A diretora Laís Bodansky comentou a chegada do coração de Dom Pedro ao País: “o governo atual flerta com ideais militares. Pedir o coração emprestado é uma forma ufanista e superficial de comemorar os 200 anos de uma independência que, de fato, nunca aconteceu. Podemos não ser mais colônia de Portugal, mas ainda somos uma colônia”.

Colaborou: Fernando Lavieri