Nunca a “Divina Comédia”, escrita no século XIV por Dante Alighieri, ganhara tantas e tão diferentes versões orais – e uma mais assustadora do que a outra. Acompanhado de seu vermute italiano Carpano, nos almoços familiares de fim de semana, o avô Tancredo Neves, indubitavelmente um dos maiores políticos que já figurou no cenário nacional, ia contando e adaptando, a seu modo, os versos dantescos para os netos pequenos Andrea e Aécio. Cada vez o inferno era mais apavorante. Se as crianças se divertissem e rissem, tudo bem; se ficassem assustadas demais, Tancredo imediatamente imaginava saídas e suavizava a história — alegria e medo se conciliavam assim. Ao longo desse texto o leitor irá se deparar diversas vezes com as expressões conciliação e conciliador, habilidade inata de Tancredo não somente no seio familiar mas, sobretudo, na vida pública na qual ocupou importantes cargos legislativos e executivos. E é esse dom, o dom da conciliação exercido impecavelmente, o aspecto que o jornalista Plínio Fraga faz prevalecer nas 650 páginas de seu livro “Tancredo Neves, o príncipe civil”, que desembarca essa semana nas livrarias de todo o País (editora Objetiva).

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Como primeiro-ministro, Tancredo preside reunião com os responsáveis por diversas Pastas: enrosco com a Petrobras e o déficit público

A obra guarda o mérito de ter uma informação a cada linha, o que a torna uma das mais detalhadas biografias de Tancredo. E há ineditismos saídos de entrevistas com familiares e de documentos do Serviço Nacional de Informação, entre os quais três temas se destacam: as conversas secretas do biografado, nos estertores do regime militar, com o então ministro do Exército Walter Pires; o conteúdo de atas de reuniões ministeriais quando Tancredo foi primeiro-ministro do presidente João Goulart, no curto período parlamentarista entre setembro de 1961 e julho de 1962; finalmente, espécie de cereja do livro, o autor conseguiu que, pela primeira vez, a poderosa secretária Antônia Gonçalves de Araújo falasse publicamente de sua condição de amante de Tancredo durante 14 anos – ele era casado com Risoleta Neves, que raramente esteve com o marido no conturbado mundo político de Brasília, preferindo a beleza do Rio de Janeiro ou a calma de Minas Gerais.

Corpo a corpo contra o golpe

O imaginário inferno de Dante tornou-se real no País no dia 31 de março de 1964 com o golpe militar que depôs Goulart e instaurou o regime de arbítrio que se estendeu por 21 anos. Na madrugada seguinte, o Brasil já tinha claro que ganhara um anjo da guarda que lutaria, desde aqueles primeiros minutos da ditadura, pela redemocratização. Coberto de empáfia, o presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, declarou “vaga a Presidência do Brasil”, mesmo sabendo que Jango estava em território nacional. Entre dentes, Tancredo, presente naquela nefasta sessão da Câmara dos Deputados, pronuncia a palavra “canalha”. Miúdo de físico e gigante de alma, tenta partir para o corpo a corpo com Moura Andrade, mais ou menos o dobro de seu tamanho. Não se tem na história outro registro de que ele tenha perdido a calma. Foi seu único momento não conciliador, e não era para menos: o mais fleumático dos seres humanos deixaria de sê-lo diante de tanta ignomínia. Nessa época, Tancredo já era um nome mais do que respeitado na política, respeito que começara 11 anos atrás, em 1953, quando se tornou ministro da Justiça de Getúlio Vargas. Na aziaga noite de 24 de agosto de 1954, Tancredo estava do lado de fora do quarto de Getúlio quando o som do tiro que encravou uma bala no coração do presidente perpassou a porta e chegou-lhe aos ouvidos. Suicídio! A carta-testamento que Getúlio deixou à Nação, com a célebre frase “deixo a vida para entrar na história”, tinha Tancredo como depositário. Tudo isso marcou-lhe muito, a ponto de ele também misturar a morte de Getúlio às fantasias com as quais contava a Divina Comédia para os netos. Eis um trecho precioso do que Aécio e Andrea ouviram diversas vezes, quando crianças, saído da boca do avô. Fala Andrea: “essa noite da morte de Getúlio, ele contava e recontava (…), os olhos enchiam d’água. Às vezes ele era interrompido porque era hora de falar em off” com algum jornalista.

Igualmente precioso, como se enunciou acima, são alguns registros das atas de reuniões, com Tancredo como primeiro-ministro. Parece que estamos nos dias atuais. Duas atas, não mais que duas, nos bastam. Sobre a Petrobras: o conselho de ministros “condena o corporativismo e o desmantelo” em que se encontrava a Petrobrás. “Erros no campo de exploração da Bahia, erros na refinaria Dique de Caxias (…) e ninguém corrigindo”. Sobre o déficit entre receita e despesa da União: “é assustador, monstruoso, insuportável mesmo” (anotou o ministro da Fazenda, Walter Moreira Salles). O autor do livro fez os cálculos: déficit de 165 bilhões de cruzeiros, em 1961, equivale a “cerca de R$ 18 bilhões se corrigido pelo índice inflacionário de lá para cá”. Em 1962, o déficit era de R$ 36 bilhões. A queda de Jango teve como mola propulsora justamente a economia esfarrapada somada a agitação política que tentava fazer do Brasil uma república sindicalista. O País passou então pelo 31 de março do qual já falamos, e de 1964 a 1984 viu-se um incansável Tancredo Neves fazer da incansável conciliação a sua incansável arma contra a ditadura, ao lado de outro gigante da política, Ulysses Guimarães.

O encontro secreto

No auge dos comícios (um milhão de pessoas em um deles) e da mobilização pelo retorno das eleições diretas, ao final de 1984 o seu escritório político em Brasília pegou fogo em um atentado do reacionarismo da extrema direita. Tancredo preocupou-se mas não se desesperou, e nesse ponto o autor expõe cirurgicamente a arte conciliatória de seu personagem. Tancredo batia na tecla de que fora uma falha elétrica, embora soubesse que não, e a quem insistia na posição contrária ele valeu-se de seca ironia que encerrou as especulações: “então foi combustão espontânea”. Um interlocutor acreditou tê-lo dissuadido de falar com o ministro do Exército, Waldir Pires, mas enganou-se: por intermédio de seu filho (Tancredo Augusto), ele esteve secretamente com o ministro no Rio de Janeiro, empenhando a sua palavra: “não haverá retaliações com os civis no poder”. A conversa foi profícua: Tancredo assegurou a sua ida ao Colégio Eleitoral contra Paulo Maluf, Waldir Pires garantiu para si o futuro cargo de embaixador em Portugal, o general reacionário Newton Cruz perdeu a função de comando. O maior adversário da ditadura militar apaziguou toda a situação e murchou os extremistas reunindo-se justamente com um… militar.

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Tancredo comemorando a vitória no Colégio Eleitoral, Ulysses Guimarães, em janeiro de 1985: conversas secretas com o ministro do Exército aplainaram-lhe o caminho

A amante e o chocolate

Tancredo elegeu-se presidente da República no Colégio Eleitoral. No dia 14 de março, véspera de sua posse, foi internado em emergência no Hospital de Base de Brasília. De lá acabou transferido para São Paulo, e então se viu o maior espetáculo da Terra feito pela turma de jaleco branco: diagnosticado (erroneamente) com diverticulite, que o levou à sepse, Tancredo foi colocado em um sofá, ao lado da mulher, Risoleta, e dos próprios médicos. Tudo para uma foto oficial a demonstrar que estava bem. Mentira. Soro e medicação estavam ligados ao seu corpo com as cânulas escondidas atrás do sofá. Assim é nossa república, e Tancredo morreu no dia 21 de abril. Foi sepultado em sua cidade natal, São João Del Rey, em meio à uma comoção popular só vista no suicídio de seu padrinho político, Getúlio Vargas. Como vice-presidente, José Sarney (que sempre se alinhara com os militares e aos 45 do segundo tempo pulou para lado civil) assumiu o poder, e deve isso a Ulysses Guimarães. Apoiado por toda a sociedade civil mas rejeitado nos quartéis, Ulysses preferiu abrir mão da luta pelo Planalto para não colocar em risco a transição. Como estaria o Brasil se Tancredo, dono de liderança e carisma, tivesse sido presidente? Sabe-se que ele já tinha planos econômicos para o País, se funcionariam ou não, isso é outra coisa. É fato, no entanto, que o arremedo de Congresso que temos hoje, no qual predomina o fisiologismo e a legislatura em causa própria, é herança da era Sarney – com Tancredo dirigindo o País, Câmara e Sanado não estariam sucateados.

Morto Tancredo, duas mulheres choraram – e muito. Dona Risoleta, a esposa; dona Antônia, a amante que também era secretária. Ela não fala de política, mas pela primeira vez abriu o coração, ao repórter Plínio Fraga. Tancredo internado, como vê-lo? Entrou em cena o diplomata Paulo Tarso Flecha de Lima, que improvisou no hospital, em São Paulo, uma reunião com os familiares do enfermo. Só visagem. O intuito era deixar o quarto livre para que Antônia pudesse nele ingressar e se despedir do amante de mais de uma década. No velório, aí foi Fernando Henrique Cardoso quem emprestou-lhe a mão e a conduziu até o caixão para evitar constrangimentos de ambas os lados. Tancredo foi o grande amor da vida de Antônia, e também ela exalta a sua alma conciliadora. Certa vez, Tancredo lhe deu uma caixa de bombons. Ela não abriu o presente mas depois o encontrou violado com um chocolate a menos. Armou o maior salseiro. Tancredo calmamente falou: “calma Antônia, fui eu que comi”. Antônia sossegou. Claro que não foi ele pegara o bombom.