Um dos filósofos e pensadores brasileiros mais relevantes da atualidade, Mario Sergio Cortella é um adepto do pacifismo, mas o atual momento da crise sócio-econômica do País o deixa apreensivo. Em todos os programas de televisão ou palestras que frequenta, ele procura ser cauteloso e ponderado. Para Cortella, contudo, o Brasil chegou a um momento de ruptura. Segundo o filósofo, o governo Bolsonaro tem levado a população a um estado de agonia, difícil de ser ignorado. “Há meios legais para que tudo isso seja entendido como ausência de responsabilidade e o atual presidente seja afastado do poder”, disse o filósofo em entrevista exclusiva à ISTOÉ. Mas quando a questão envolve sua popularidade junto aos jovens nas redes sociais, ele não se incomoda com os xingamentos e palavras vazias de ódio. “Podem falar mal do meu sotaque, dizer que sou burro, o que for, mas é preciso entender que há uma grande diferença entre opinião e acusação”, afirma. Ao lançar a coletânea “Quatro x Quatro: reflexões para bem pensar, bem sentir, bem agir e bem viver”, ao lado dos seus colegas Leandro Karnal, Monja Coen e Clóvis de Barros Filho, Cortella se sente confortável ao estar entre amigos, mesmo que, às vezes, não concorde com o que pensam.

Há algum conflito de ideias entre o senhor e outros filósofos, como Karnal, Pondé e Monja Coen?
De maneira nenhuma, somos amigos. E até lançamos livros juntos. Temos um afeto grande, o que não temos é uma concordância contínua. Há diferenças, claro. Escrever com uma ex-jornalista, que hoje é monja, traz uma visão bem diferente da minha. O Karnal, como historiador, é outra. O Pondé, que navega por todas as áreas, também. Com cada um deles há um prazer e um desafio intelectual.

Qual sua avaliação do trabalho do atual ministro da Educação, Milton Ribeiro?
Não tivemos a presença do Ministério da Educação como órgão orientador até agora, durante os 24 meses de governo. Então, não é nem possível avaliar, pois não há nada a ser avaliado. Nada foi feito. Não há clareza nenhuma. Não dá nem para fazer uma comparação com governos anteriores, pois não se tem um programa nem projetos.

O senhor acredita que isso aconteça em todos os ministérios?
Não, no campo da infraestrutura há ações válidas e em carreiras de estado também. Mas no campo social, o que mais enxergamos é a ausência de um programa que seja claro. No campo da educação e da cultura, por exemplo, há por parte do governo uma recusa contra tudo que já foi feito, porém, não há uma proposta para uma substituição, não há um plano concreto. Eu não tenho uma avaliação positiva do governo federal e nem precisaria tê-lo, pois os resultados são evidentes. Temos aí dois anos de gestão, que tem levado a população a uma situação de agonia cada vez mais forte. Na educação, na saúde, na cultura e na economia, a gestão federal tem sido desastrosa. E vem levando algumas instituições, como as Forças Armadas, à total desmoralização.

Nossa democracia corre risco?
Sempre. A democracia é um sistema político no qual o risco é inerente. Isto é: ela está sempre em um jogo de forças que podem sair do controle. Todos os governos passam por isso, mas no governo Bolsonaro isso tem acontecido mais, já que há diversas pessoas com uma perspectiva contra a democracia. Há situações “democracidas”, um espécie de suicídio da democracia, “o democracídio”, como foi o que aconteceu com a invasão do Capitólio americano, por exemplo. O atual governo tem um presidente que possui diversas falas “democracidas”. Por isso, é preciso que a sociedade fique alerta em proteger esse patrimônio, que é a democracia brasileira.

O senhor vai tomar vacina?
Claro. Havendo disponibilidade, o farei. Como sempre fiz ao longo da minha vida. Vacinei todos os meus filhos e netos. Não existe razão alguma para que eu não tome a vacina.

Qual é o interesse do governo em desinformar em relação à vacina?
Acho que o interesse do presidente é atingir alguns campos de confronto no qual ele não tem ainda a comprovação do resultado. Para dizer de um modo mais direto: por exemplo, eu posso acreditar que a Terra é plana sem nenhum tipo de consequência, porque eu não tenho como provar para quem nisso acredita que ela não é plana, eu teria que mandá-la para fora do planeta. Então, ele pode dizer isso à vontade, enquanto não consegue ver por si mesmo a prova. Portanto, posso dizer que a vacina faz mal não vacinando as pessoas. Assim não há como provar que faria algum mal.

Qual conselho o senhor daria para o cidadão comum na hora de lidar com um terraplanista?
Parta daquilo que Descartes chamava de “dúvida metódica”, ou seja, não a dúvida pela dúvida, mas a capacidade de duvidar até encontrar um ponto de certeza. Sempre que me deparo com uma notícia, mesmo em minhas redes sociais, eu adoto uma postura cautelar. Como pessoa que possui formação escolar, não posso adotar uma postura iluminista, aquela em que sou eu quem vai esclarecer o povo, porque isso seria arrogante. Muito menos uma postura passiva, na qual eu recuse todo o conhecimento que acumulei, como se não tivesse serventia.

O fato de ter cerca de 13 milhões de seguidores nas redes sociais aumenta sua responsabilidade?
Tenho uma tarefa social. Afinal, é uma questão de responsabilidade. Nem todos que nos seguem são favoráveis às nossas convicções, mas com aqueles que o são, tenho sim, um dever ético de não ser inconsequente ou leviano naquilo que indico ou anuncio. Jamais poderia dizer para as pessoas que me seguem que quero que pensem como eu penso, ignorem todos os outros e sigam somente a mim.

O País atingiu mais de 220 mil mortos por causa da pandemia. O número o espanta?
Durante meu trabalho na administração pública nos anos 1980, lidei com epidemiologistas e aprendi muito ao observá-los. Mas jamais imaginei que chegaríamos a um número como esse. Lembro que em março de 2020, fui presencialmente ao meu último programa de televisão, o “Domingão do Faustão” falar sobre a pandemia. Até aquele momento, não havia nenhuma morte no Brasil. Como leigo, jamais imaginei este cenário. Isso se dá pela violência do vírus e pela incapacidade dos governantes que não cumpriram o seu dever.

Como lidar com a morte?
A morte é uma advertência, não uma ameaça. O fato de eu me saber mortal me faz não desperdiçar a minha vida, pois ela cessará. Com a morte, principalmente das pessoas que amamos, a gente não se conforma, só se conforta. Mais de 220 mil mortos exige que uma sociedade como a nossa, e cada pessoa em particular, não se conforme, não aceite como se fosse normal. O que mais transtorna é o fato de se morrer por causa da impossibilidade de ter acesso ao atendimento médico que poderia evitá-la, no caso da pandemia. A morte que chamamos de antecipada devido a impossibilidade de socorro.

Os brasileiros estão indignados com essa situação atual. Qual é a solução? Uma revolta popular?
De maneira nenhuma. O que os “democracidas” mais desejam é que a população perca a paciência. O “democracida” quer que a situação fique insustentável ao ponto de ruptura. Nós temos meios institucionais para que qualquer autoridade possa cumprir o seu dever ou, caso não o faça, seja removida de seu cargo. A revolta violenta não pensa nas consequencias do “depois do amanhã”. Evitar um estado de sítio, por exemplo, é fundamental.

Em sua opinião, chegamos ao momento de abrir um processo de impeachment contra Bolsonaro?
Acho que já chegamos a essa situação em outros momentos. Principalmente na questão da saúde, neste grave momento pandêmico. Ela é diferente de outras situações de impeachment que tivemos antes. Fazer com que a Nação tenha uma proteção nítida e protetiva é possível. Há meios para que tudo isso seja entendido como ausência de responsabilidade e o presidente atual seja afastado. Não é uma coisa de agora, é algo anunciado como possibilidade desde o início de 2020. Não sou alguém que deseja o afastamento como hábito. Nenhum País sai incólume em uma situação desse tipo. Ela sempre provoca cicatrizes, conflitos e feridas, por isso é preciso cuidado. Agora, o impeachment é necessário, como já o era há mais tempo.

O senhor foi muitas vezes questionado se votaria em Bolsonaro em 2018. O senhor votaria no atual presidente agora?
Só voto em alguém que também votasse em mim caso eu fosse candidato. Seria o sinal de que haveria uma coincidência de valores. Não votaria nas pessoas que agora estão na gestão federal, porque elas não votariam em mim. E por considerá-las incapazes de proteger a Nação.

O senhor trabalhou muito tempo com Paulo Freire. O que acha da aversão de Bolsonaro ao educador?

Há três explicações possíveis sobre o Paulo Freire: quem, por desconhecê-lo, acredita que ele escreveu algo sem validade. Há pessoas que mesmo conhecendo seu trabalho aderem à críticas negativas sobre seu trabalho. Afinal, como dizia o próprio Paulo Freire, a educação é um ato político. Ela toma parte, mas não toma partido, já que a educação não é uma atividade neutra. Uma pessoa que se elege falando mal de Paulo Freire está no seu direito. Contudo, se há uma objeção a ele, que ela seja colocada com argumentos. A retórica furiosa, a mera distribuição de grosserias e xingamentos, não é um raciocínio admissível.

Bolsonaro, por exemplo, quer uma escola com Deus, família e o Brasil acima de tudo. Isso está correto?
Essa foi uma escolha do governo e cabe à sociedade decidir se acolhe essa ideia ou não. Eu não tento calar alguém que pense desse modo. O que eu tento é contra argumentar. No entanto, a presença religiosa dentro do sistema público, deixa marcas. Isso pode ser discutido, mas uma escola laica, em um país laico, não precisa ser uma escola ateia. Lembrando, porém, que um país laico é aquele que não adere, mas também não recusa nenhuma religião.

É possível viver em 2021 de uma maneira pacífica e agradável?
Não há como. Uma pessoa que deseja viver de modo agradável está iludida com o que está à volta dela, está alienada. Mas não é preciso viver 2021 apenas de modo sofrido e torturante. Não há tantas condições para que a alegria venha de modo expressivo. Porém, nada impede que a alegria possa vir. Nem tudo que está à minha frente pode ser agradável, mas nem tudo será desagradável. Não é encontrar o que os budistas chamam de caminho do meio. É encontrar uma possibilidade real. Lembrar que a flor nasce no asfalto. É preciso acender uma vela e não amaldiçoar a escuridão.