Poucos brasileiros na história provocam um impacto cultural e social tão grande no mundo como Sebastião Salgado, 78 anos, fotógrafo radicado em Paris e nascido em Aimorés (MG). Suas belas e poéticas imagens em preto e branco não ficam restritas aos acervos dos museus mais importantes do planeta, mas ganham vida em fóruns internacionais onde se discutem o drama dos refugiados e a preservação do meio ambiente – tema que o tornou um crítico contundente do governo Jair Bolsonaro. A preocupação com a natureza fez o ativista colocar a mão na massa: o Instituto Terra, fundado em 1998 por ele e Lélia Wanick Salgado, sua esposa e curadora de seus livros e exposições, já plantou mais de 2,3 milhões de árvores, recuperou 600 hectares de terra e protegeu 2.000 nascentes no Vale do Rio Doce, divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. Depois de Paris, Londres e Roma, Salgado traz a floresta para a metrópole paulista: ele conversou com ISTOÉ na abertura de sua nova exposição, Amazônia, no Sesc Pompéia.

O senhor já fotografou inúmeros dramas humanos, êxodos e deslocamentos de populações inteiras. Como esse novo trabalho, Amazônia, se compara a eles?

É muito diferente. A maioria dos dramas que cobri eram de sociedades consolidadas, agrupamentos humanos na Ásia, América Latina, África. O que está acontecendo na Amazônia é outro tipo de tragédia. É algo que se pode evitar, um problema que se agrava sem uma razão que o justifique. O governo Bolsonaro está levando à destruição o bioma amazônico, a maior riqueza dos brasileiros e um patrimônio de todo o planeta. O mundo depende da floresta e essa destruição está sendo feita de maneira completamente irracional.

Como isso afeta as comunidades indígenas isoladas com as quais conviveu na floresta amazônica?
As populações indígenas hoje estão ameaçadas, mas ainda têm uma fronteira móvel e espaço para se distanciar um pouco mais. A diferença para mim é em termos de expectativa. Já trabalhei com grupos em situação de desastre, comunidades que tinham sido retiradas da normalidade e que buscavam voltar a uma situação de equilíbrio. Na Amazônia é justamente o contrário: eles viviam numa situação estável e agora passam por um cenário onde não há futuro. Não existe nenhuma condição de suas famílias terem tranquilidade porque o inimigo está aí, em guerra constante, e não tem previsão de baixar as armas.

Como é possível mudar esse cenário?
Seremos obrigados a criar uma nova perspectiva assim que terminar esse governo. Temos de eleger alguém que promova a estabalização das comunidades indígenas para permitir que eles possam voltar a relaxar e a viver em paz. Quando você ouve a opinião dos líderes das comunidades indígenas na Amazônia, a visão deles é de que passarão momentos ainda mais difíceis do que já vivem hoje.

Como brasileiro que mora no exterior há anos (em Paris, na França), sente diferença na forma como o País é visto pelos estrangeiros de algum tempo para cá?
O Brasil sempre foi muito bem visto e aceito no mundo inteiro. Somos considerados um povo pacífico, não temos passivo de guerra ou agressões. Não somos um país de ataque, como a França, que tem presença militar no Mali e no Líbano. Também não somos como os EUA ou a Inglaterra. Somos pacíficos. De uma hora para outra, ficou difícil para os estrangeiros compreenderem como os brasileiros apoiaram e elegeram um governo violento como o atual. Para eles é difícil compreender por que a autoridade máxima do País incita o próprio povo a manter armas de fogo em casa. Elas só servem para matar o próximo, são instrumentos exclusivos para a agressão. E o governo encoraja centenas de milhares de pessoas a possuírem esses armamentos. É difícil para um estrangeiro conceber o estímulo às invasões do território de povos indígenas, a destruição da biodiversidade, a introdução de produtos perigosíssimos na agricultura.

A aprovação recorde de agrotóxicos e o projeto de lei que reduz a fiscalização contribuem para essa visão?
A agricultura brasileira está passando a ser totalmente poluída, prática analisada com muito cuidado em todo o mundo. Para os estrangeiros é muito difícil reconhecer essa identidade dos brasileiros, que antes eram conhecidos pela música incrível, a atitude notável em relação ao meio-ambiente e o posicionamento do lado da paz. Eles ficam perplexos com a ideia de que o Brasil hoje é um país tão violento quanto qualquer outro, talvez até mais. A acusação é contra o governo brasileiro, mas é bom esclarecer que ela diz respeito apenas a uma parte desse governo. Afinal, o Brasil é composto três poderes: o Executivo é duro com as comunidades indígenas, mas temos um Judiciário que atua como um grande parceiro da Amazônia.

O senhor colabora com instituições como a ONU, Organização Mundial da Saúde e Médicos Sem Fronteiras. Como vê essa onda de negacionismo contra a ciência e as vacinas, mesmo em países avançados? A humanidade está dando um passo para trás?
Quando você vê a eleição de Hitler na Alemanha, nos anos 1930, depois a de Mussolini, na Itália, entre vários capítulos da história recente, você percebe que uma parte da população não é tão esclarecida assim. Há quem seja aberto a assumir posições claras, mais progressistas. E há pessoas que têm um complexo de inferioridade, uma tendência a se reunir em torno de ideias duras e violentas. Acho que é isso que está acontecendo agora. Não sou antropólogo, mas tenho a impressão de que há uma percentagem da população no planeta, entre 20% e 25%, que está envolvida em um ciclo de ideias retrógradas. É a mesma coisa na França ou nos EUA, um momento que reflete no crescimento da extrema direita na Europa. A Inglaterra tinha uma posição privilegiada na União Europeia: veio um grupo e convenceu a população de que era bom abandoná-la. Hoje a situação é difícil. Há problemas de abastecimento e vão ter de criar um novo modelo econômico. O grupo que levou o país a sair da UE não tem nenhuma proposta para melhorar a vida dos ingleses.

Isso seria reflexo das redes sociais?
Não acredito. Elas são um instrumento que pode ser usado por um lado ou pelo outro. Podem acelerar um pouco a situação, mas não são a causa. A razão é societária, as redes podem ser só um vetor que acelera ou diminui os efeitos.

O senhor acompanha a política brasileira? Vê surgindo alguma liderança política interessante?
Eu tinha esperança no governador Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, mas ele não conseguiu sequer ser eleito dentro do seu partido. Acho incrível o Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo. Tem ética e consciência ambiental, mas não consegue se firmar como líder. A máquina política brasileira é muito complexa.

E fora do Brasil, há algum nome interessante despontando como liderança? Emmanuel Macron, Joe Biden?
Eu tinha uma certa expectativa com o Biden, mas me decepcionei. A guerra fria tinha acabado, mas ele a trouxe de volta. Biden conseguiu unir duas potências militares, a Rússia e a China, o que é um absurdo. Achava que a gente já estava evoluindo para outra fase. Em função da geopolítica dos EUA, o presidente Joe Biden tenta se aproximar do governo Bolsonaro. Isso deixa os democratas decepcionados, porque não é possível se aproximar de um governo como esse de maneira alguma. Biden é levado a isso para ser um contraponto em relação à China na América Latina. As máquinas estatais hoje praticamente não dependem mais dos seus líderes, elas se movimentam quase sozinhas dentro de uma dinâmica terrível.

Foram mais de sete anos de expedições à Amazônia. Como o senhor reconhece que vale a pena fotografar determinada imagem?
Não é bem assim. Você sabe o local e o horário da expedição, mas não sabe o que você vai encontrar. Esse grau de liberdade é a grande beleza da fotografia. Tem de buscar, se integrar, esperar. Aí, quando acontece, você está apto a capturar a imagem. É preciso paciência e dedicação. As coisas sempre acontecem, mas é preciso esperar que elas aconteçam. Fotografia é assim. Eu não sabia o que ia trazer quando viajei. Fui apenas com a vontade de ver a Amazônia – e o que vi é o que está na exposição. Não fui até lá para confirmar um ponto de vista, até porque eu só poderia formar essa visão lá, enquanto estou observando a floresta, ao longo do percurso. A primeira vez que fotografei a região, em 1998, mais de 20 anos atrás, só foi possível porque meu objetivo era simples: ver a floresta. Queria viver com os indígenas, viver essa experiência. Minha exposição hoje é o registro da Amazônia viva, não da Amazônia morta. Achar que é possível estabelecer uma relação de cima para baixo é algo completamente falso. Não fui lá para capturar essas imagens e trazê-las aqui para mostrar às pessoas. Viajei porque queria conhecer, ver a Amazônia de perto.

O mundo está cada vez mais rápido, com videos, redes sociais. Como explica o fascínio que suas imagens dramáticas, em preto e branco, continuam a exercer?
Essa velocidade é reflexo da superficialidade que a sociedade vive. Minhas fotografias foram feitas há dez, quinze, vinte anos. Elas têm, portanto, uma certa densidade. Contam a vida e representam um pedaço real de dignidade. Isso tem uma força que toca as pessoas. O poder não é só da tecnologia, é da verdade. É simplesmente isso.

O senhor vive há anos fora do Brasil. O que mais sente falta quando não está no País?
Do Brasil de verdade, dos brasileiros. Quando entro em um avião para viajar ao Brasil, em qualquer lugar no mundo, eu entro com um sorriso. Mesmo hoje, com esse governo terrível, que nenhum de nós está de acordo, os brasileiros continuam a ser os brasileiros. Aqui é um país diferente. Quando você anda nas ruas na França, você vê a polícia, o Exército, essas coisas. Aqui não há essa expressão de autoridade o tempo todo. Viajei anos pela Amazônia e nunca encontrei um policial ou qualquer outra autoridade. Os brasileiros são diferentes, têm outra proposta. É um povo mais tranquilo, relaxado. Gosto muito de ter nascido aqui. Aprecio ser brasileiro.