Na manhã de 8 de janeiro, data do “Capitólio brasileiro”, o então presidente em exercício do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), procurou o governo do Distrito Federal para comunicar a preocupação do diretor-geral da Polícia Legislativa da Casa, Alessandro Morales, com a magnitude que a manifestação marcada para a tarde daquele dia poderia tomar, uma vez que 100 ônibus haviam chegado à capital na véspera, além de sugerir um reforço na segurança do entorno do Congresso. Depois de uma tentativa frustrada de contato com o governador Ibaneis Rocha, o senador conversou por telefone com o chefe da Casa Civil brasiliense, Gustavo Rocha. Ouviu que os atos seriam “pouco numerosos”. Veneziano, então, desligou e informou a Rodrigo Pacheco que o GDF assegurava ter tudo sob controle. A calmaria vendida pelo governo local durou pouco. Quatro horas depois, o emedebista recebeu uma ligação atordoada do diretor-adjunto da Polícia Legislativa, Gilvan Viana Xavier, que reportou o cenário caótico em meio ao quebra-quebra no Congresso. Por alertas ignorados, como esse, Veneziano aponta que a gestão Ibaneis Rocha foi “negligente”. O senador defende uma “punição exemplar” aos extremistas que participaram da barbárie na capital, considerada por ele análoga a atos terroristas.

O sr. estava na condição de presidente em exercício do Senado em 8 de janeiro. Como recebeu a notícia sobre a invasão ao Congresso?
Estava em João Pessoa, porque passamos os finais de semana em nossas bases. Recebi um telefonema do chefe da Polícia Legislativa expondo suas razões sobre iminentes riscos que corríamos com o desenrolar das manifestações, que poderiam desaguar em depredações ou na invasão do Congresso e de sedes de outros Poderes. Com isso, ele pediu que eu tentasse me comunicar com o governador do Distrito Federal para pedir reforço diante de um número que se constatava considerável de militantes. Ali, levava-se em conta o deslocamento de mais de uma centena de ônibus contabilizados e estacionados no DF.

O senhor falou com o governador?
Tentei falar com Ibaneis e não tive êxito. Liguei, então, para o secretário da Casa Civil, que me atendeu muito bem e, categoricamente, me assegurou que o cenário estava sob controle, porque as devidas precauções haviam sido adotadas pelas forças locais de segurança. Ele chegou ao ponto de mencionar que seriam manifestações não numerosas. Citou 400 pessoas. Listou, como medidas, o bloqueio de acesso dos militantes às três sedes do Poder. Reiterei as preocupações da Polícia Legislativa e pontuei a presença de mais de 100 ônibus, o que poderia, numa conta bem rápida, significar mais de 4 mil pessoas. Era delicado porque a Polícia Legislativa do Senado não dispunha de contingente para fazer uma contenção, se houvesse má intenção dos manifestantes, o que terminou por acontecer. Desliguei o telefone e passei as informações para Rodrigo Pacheco. Falei à Polícia Legislativa que ficasse tranquila, porque havia a garantia do GDF que nada aconteceria. Quatro horas depois, fomos todos surpreendidos. Me recordo bem que o chefe-adjunto, Gilvan, me ligou por volta de 13h30 e desligou atônito quando a invasão estava acontecendo.

Houve, então, negligência por parte do GDF?
A meu ver, sim. Não há outra constatação possível que não essa. Na sexta-feira, a Polícia Legislativa também já havia feito um alerta inicial. No momento em que a Secretaria de Segurança tem conhecimento de possíveis acontecimentos que extrapolem o limite de manifestações pacíficas e não toma as medidas cabíveis para a contenção, é uma omissão. É algo que, para mim, extrapola a falha e vai para um ato doloso. O GDF assumiu o risco, porque, avisado previamente sobre o que iria acontecer, não agiu. Claro que os processos de investigação correrão. Mas houve uma deliberada indisposição por parte da estrutura do GDF em fazer o que era devido. Nem número de policiais minimamente suficiente para um ato mediano você tinha. Quanto mais para um ato das proporções que vimos.

Como correligionário de Ibaneis Rocha, concorda com o afastamento dele por ordem do ministro Alexandre de Moraes?
Não tenho todas as informações precisas, que, fatalmente, são conhecidas pelo ministro e embasaram a decisão. Mas, no instante em que o GDF perdeu por completo o controle da situação, sendo ele o mais importante ator na garantia da segurança, deixou de exercer o próprio papel constitucional. Posso dizer que a intervenção federal está bem justificada. Você não pode contemporizar ou minimizar a baderna e o vandalismo de prédios públicos e monumentos tombados, tampouco as agressões de quem se propunha a atentar contra a democracia. Os atos bolsonaristas são de extrema gravidade e não podemos permitir que se repitam.

Jair Bolsonaro pode ser punido pela barbárie, embora estivesse nos EUA?
Falar sobre isso seria temerário. Não temos elementos, por ora, que apontem que o ex-presidente tenha participado de forma direta e deliberada da organização dos atos de 8 de janeiro. É preciso que as investigações avancem.

Considera, porém, que ele tem uma parcela de responsabilidade?
O silêncio de Bolsonaro foi mais ruidoso do que uma fala verbalizada. Quando concluído o processo eleitoral, em vez de ter adotado uma postura de quem respeita as regras do jogo democrático, fez um pronunciamento muito tímido, o que permitiu que uma tese completamente sem fundamento, como a ocorrência de fraude nas urnas de 2022, se disseminasse. Em vez de dizer ‘Olha, participei, não obtive êxito. Mas os resultados estão aí. Cumpramos e nos atenhamos ao que nos foi reservado: o papel de oposição”, alimentou as expectativas de um golpe. É um silêncio que não contribuiu. Ao inverso. Incitou e levou tantos e tantos a acharem que há espaço para golpe.

Depois dos atos terroristas, o ex-presidente voltou a compartilhar — e depois apagar — fake news sobre as urnas. A postura pode incentivar novos atos?
Lamentavelmente, com essa postura inaceitável, Bolsonaro, agora, passa a permitir que concebamos a presença dele em eventuais novos atos. É extremamente deletério este comportamento, enquanto, no Brasil, buscamos a normalidade e a estabilidade institucional.

O terror promovido pela horda extremista de Bolsonaro pode reduzir a força dele como uma liderança da oposição?
Bolsonaro constituiu-se como uma figura que atraiu em torno de sua plataforma política e de seu pensamento milhares de seguidores. Por mais que episódios como o de 8 de janeiro abram os olhos de alguns, ele continua a ser uma liderança política para um universo de cidadãos que acham que o que ele prega é o certo. Não é correto ou estratégico que quem está no governo e nós que temos posição política alinhada a Lula vejamos em Bolsonaro uma figura pública que não vai ter sua presença efetiva. Não é cachorro morto.

Temos uma série de congressistas contemporizando a situação. É o momento de a Justiça e o próprio Congresso serem mais duros com aqueles que usam o mandato para insuflar golpistas?
Sim. Prezo pelo pleno exercício das prerrogativas que o parlamentar ostenta a partir do momento que assume o mandato que lhe foi conferido. Congressistas têm direito a manifestação e à expressão. Isso faz parte do Legislativo, que debate assuntos diversos da República. Agora, quando se extrapola, quando se passa a proferir opiniões que ensejam enfrentamento e desconhecimento sobre cláusulas pétreas constitucionais, como o regime democrático, e, às vezes, até se estimula práticas golpistas, não temos como concordar.

O Congresso errou em deixar de fora da lei antiterrorismo a possibilidade de punição a militantes políticos?
Os atos de extremistas são análogos ao terrorismo. Por que? Porque se tomaram iniciativas para golpear as instituições. O propósito, o chamamento a essa ‘manifestação’ era no sentido de desestabilizar os pilares da democracia por meio do horror. Há como punir os participantes. Temos o artigo 359 do Código Penal, (que tipifica como crime e restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional). Eles pagarão ainda com base na legislação que lista crimes contra o Estado Democrático de Direito.

As instituições saem mais fortes deste episódio criminoso?
O day-after de 8 de janeiro fez com que as instituições estivessem muito mais unidas em torno de uma preocupação comum. A situação ampliou a necessidade de nos imbuírmos de fazer uma defesa da democracia, sem desconhecermos as competências próprias de cada Poder.

A partir de agora, qual o caminho para a pacificação nacional?
Precisamos de severidade nas punições. Estes atos não podem ser tomados como algo natural. Não podemos banalizar. A gravidade desses episódios é quase imensurável. Supremo, Congresso e Planalto estarão logo recompostos materialmente, mas as feridas na democracia ficarão abertas por muito tempo, porque vimos ações para humilhar, desmoralizar e constranger as instituições e os pilares do Estado, que, vez por outra, nas últimas três décadas, sofreram solavancos. Precisamos garantir uma estabilidade maior. As pessoas que estavam na Esplanada sabiam o que estavam fazendo. Foram chamadas para isso. Ninguém pode se apresentar como inocente ao ponto de não saber que o ato foi planejado e estudado para a ruptura. Precisamos de severidade, de uma punição exemplar, para que aqueles que ainda tramam ou planejam tramar contra a democracia, ordem e o Estado saibam que estarão diante de instituições sólidas e unidas.

Como a CPI dos atos antidemocráticos, que deve ser instalada em fevereiro, pode ajudar nesta penalização, se as investigações em trâmite no STF estão mais avançadas?
A instalação da CPI é pertinente independentemente de investigações de outros órgãos. Há dezenas de exemplos de apurações conduzidas no parlamento que serviram como munição para a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República. Vejamos a CPI da Covid, que descobriu, por exemplo, negociações escusas na aquisição de vacinas. As investigações podem ser complementares.

Augusto Aras, aliás, teve um papel no descontrole de 8 de janeiro?
Aras disse que, durante os dois anos anteriores, iniciativas foram adotadas para conter e limitar essa sanha golpista. Tenho muito respeito pela figura do procurador-geral da República. Mas penso que, efetivamente, em alguns pontos, ele deveria ter atuado mais firmemente. Havia elementos para fazê-lo.