O escritor e navegador Amyr Klink é o maior aventureiro brasileiro. É dele a façanha, em 1984, de fazer a primeira travessia solitária entre o Brasil e a África em um barco a remo. A história da viagem foi contada no livro “Cem dias entre o céu e o Mar” (Companhia das Letras), que vendeu mais de um milhão de cópias e está sendo lançado na versão audiolivro. Também estão em seu currículo dezenas de viagens à Antártida e impressionantes expedições de circunavegação polar. Filho de imigrantes, o pai era libanês e a mãe, sueca, ele aprendeu desde cedo a se planejar e a lidar com o medo, duas pré-condições para se arriscar nos oceanos. Grande orador e dono de frases de efeito, tornou-se palestrante e fala mundo afora sobre suas inúmeras viagens e experiências. Aos 65 anos, em meio a uma pandemia, Amyr Klink ainda mostra um espírito destemido: anda de scooter por São Paulo, cidade que mata um motociclista por dia com seu trânsito caótico. Em entrevista à IstoÉ, ele contou sobre a infância ao lado de um pai racista e sobre como é possível pensar num mundo sustentável que vai além do mero discurso ambientalista. “Esse negócio de ‘não use sacola de plástico no mercado’ é a coisa mais hipócrita que pode existir”, disse.

O senhor é um homem de grandes horizontes. Como tem lidado com o isolamento forçado?
Eu fiquei com o Paratii , meu barco de 30 anos, retido nas Ilhas Falkland após fazer duas viagens à Antártida durante o verão. Acabei tendo que voltar de avião. E agora o barco está lá sozinho há oito meses. Passei a quarentena com uma motosserra cortando meus bambus, pois a vizinhança reclamou que tinha virado uma floresta. Então tiveram que aturar a motosserra.

O senhor teme que a Antártida se transforme em pólo turístico, com transatlânticos circulando por ali?
Graças a Deus esses transatlânticos do Caribe não vão pra lá. Há um limite de pessoas por embarcação e a fiscalização é rígida, fora o custo, que passa de US$ 15 mil. Até há alguns anos era possível visitar o local meio que na pirataria, não havia controle, viajei muito para lá desse jeito. Mas agora é difícil.

O senhor afirma em suas palestras que há um exagero na hora de falar sobre o papel do plástico na sociedade e nos oceanos. Que exagero é esse?
Existe uma histeria com essa questão. O fato é: nós nunca vamos nos livrar do plástico. Nós precisamos aprender a manejar e a desenvolver uma economia circular de verdade. A palavra sustentável está na moda e está torrando a paciência um pouco. Esse negócio de “não use sacola de plástico no mercado” é a coisa mais hipócrita que pode existir. Na feira, na fazenda, tudo que você planta e consome é transportado em plástico. Quando você planta, você cobre a terra de plástico.

O que o preocupa mais na poluição dos oceanos?
O que me preocupa não é o plástico. São os milhares de produtos químicos que ninguém vê. Produtos como a pintura dos barcos, afluentes de indústrias que vão parar no mar ou simplesmente qualquer coisa que afunde. As pessoas geralmente só se preocupam com as ilhas de plástico que se formam nos oceanos, mas elas são apenas meio por cento do problema global e também mais fáceis de resolver.

No futuro teremos a substituição do plástico por materiais biodegradáveis, por exemplo?
O plástico é um produto maravilhoso que eu não vejo substituição. Não adianta fazer um belo discurso ecológico e entrar no carro e sair dirigindo. Um carro é praticamente feito de plástico e não tem como substituir. O pára-choque, mangueiras, conectores, tudo. Carro elétrico feito todo em alumínio não vai rolar. O que eu não gosto na história do plástico é o maldito “plástico reciclável” porque não é reciclável de fato. Ele se degrada fisicamente, mas então ele começa a entrar na cadeia alimentar e aí não tem graça. Não quero comer sushi de propileno.

A ativista sueca Greta Thumberg viajou para Nova York em um veleiro para não queimar combustíveis fósseis e fazer seu discurso na ONU. O que o senhor acha dela?
Acho que ela deveria fazer mais ações afirmativas e não apenas protestos. Fazer protesto hoje com as mídias sociais e aparecer para mídia do mundo inteiro é muito fácil. Acho uma atitude totalmente hipócrita. Não concordo com uma linha do que ela fala, quero ver o que ela faz. Achei bacana ela fazer a travessia, mas em um veleiro chique, com o papai do lado, algo que não quero que as minhas filhas façam.

Mesmo tendo se formado em economia e virado navegador, a questão urbana e a engenharia sempre foram grandes paixões. Não pensou em trilhar esse caminho?
A questão urbana sempre me interessou profundamente, mas acho que eu seria um engenheiro chato. Por gostar de viajar, sempre quis entender porque alguns países têm favelas e outros não. Por que nós temos tanto? Por que nós temos tanto em estados poderosos como São Paulo e Rio de Janeiro?

Qual tipo de solução o senhor propõe?
Hoje, com tecnologia, é possível fazer uma moradia confortável com valores baixos e o brasileiro é competente nessa área. Porém, vemos o contrário, vemos esse crime que é o programa “Minha Casa, Minha Vida”. O “Minha Casa, Minha Vida” é um galinheiro urbano. Como podem fazer mil casas ou prédios um do lado do outro, sem nenhuma praça, sem nada?

Seu desgosto com o programa é pela estética?
A arquitetura é sim de décima quinta categoria, mas não só isso. Eu conheço as pessoas que constroem e estão ganhando dinheiro com isso. Infelizmente, a carência de moradia é tão grande no País que as pessoas aceitam. Eu não aceito que no meu país as pessoas vivam empoleiradas em prédios iguais sem uma praça ou uma área de esporte. Não custa caro fazer e planejar melhor.

Nas suas dezenas de viagens, que imagem o senhor viu que os estrangeiros têm do Brasil e do brasileiro?
Existe uma espécie de desconfiança com o brasileiro. Quem me contou isso recentemente foi minha filha Tamara, que está navegando no Ártico. Ela contou que toda vez que dizia que era brasileira todo mundo meio que se afastava. Porque, de fato, temos uma imagem ruim lá fora. O brasileiro é egocêntrico, barulhento, folgado, não pensa no todo, no conjunto. Só pensa no lugar dele na fila. “Ah, mas as pessoas são pobres e não tiveram educação”, não, os brasileiros ricos são mal educados e não respeitam nada.

Qual o pior problema que o país enfrenta atualmente?
Não aceito os problemas de saneamento básico do Brasil. Nem a educação precária que temos. Tive a oportunidade de ver diversos projetos que deram certo. E um deles mostrou que demora até 18 anos para um investimento em educação dar resultado positivo. Investir em educação é ingrato e demora. E, infelizmente, 18 anos é um tempo que, culturalmente, com a nossa política tupiniquim, está fora da visão de qualquer ministro ou presidente. Nenhum político brasileiro tem a capacidade de pensar a tão longo prazo. Temos um capital humano valioso. As possibilidades que vejo aqui são enormes, mas mal aproveitadas. Gostaria muito que esse governo parasse de falar bobagens e investisse em educação.

O senhor teve uma educação em colégio jesuíta e também cresceu ao lado de um pai autoritário. Como você lida com essa bagagem?
Ele foi um homem bastante polêmico, chamava os padres de pederastas, com desdém profundo. Fui expulso do Colégio São Luís (um dos mais tradicionais de São Paulo), enquanto estava de atestado em casa. Meu pai foi um homem violento. Um dia deixaram meu irmão de castigo e meu pai foi lá ver o que tinha acontecido. Ele foi à sala do reitor, pegou o sujeito pela gola e o espancou na frente de todos. Eu não queria ser como ele. Nunca fui violento, nunca bati num ser humano. Ele era absolutamente racista e antissemita e nos impôs muito medo. Mas posso dizer que esse medo me ajudou também. Tudo que eu fiz precisava ser muito calculado, se eu fizesse algo errado, levaria uma surra, então eu sempre planejei tudo muito bem, calculando tudo que pudesse dar errado.

Seu pai seria um bom bolsonarista se estivesse vivo?
O Bolsonaro é uma moça ao lado do meu pai. Andava armado, era uma figura polêmica e conhecida na cidade. Nós fomos criados em um ambiente de muita discriminação. “Aquele cara é um preto, não entra aqui”, ele dizia. Se alguém entrasse com um chapéu no restaurante, ele levantava, tirava o chapéu do cara e ainda dava um tapa na cara dele. Se a pessoa reagisse, meu pai tirava o revólver.

Como o senhor conseguiu atravessar o Atlântico a remo sem que ele ficasse sabendo?
Ele foi a última pessoa para quem eu pensei em contar. Se tivesse contado, acho que ele teria atirado em mim. Ele soube pela imprensa.

O senhor observa um movimento dos europeus em cobrar o Brasil pela sustentabilidade no agronegócio?
O agronegócio brasileiro é um sucesso, mas um sucesso que está esbarrando nas questões que eram consideradas “fúteis”, como sustentabilidade, e hoje não são mais. Se não tivermos uma política consistente para mostrar, por exemplo, o rastreamento dos produtos de pecuária e a regularidade de ocupação de terras para pastagem, isso pode afetar o consumidor final. As sanções são pequenas ameaças que não são cumpridas, pois eles têm interesse no nosso produto. Por que eles não produzem celulose em Oslo? Eles preferem investir nas fábricas de celulose daqui, já que é um processo poluente e caro. Não querem sujar o país deles. Então é muito bonito pra eles ter a Greta reclamando, enquanto os países em desenvolvimento, como o Brasil, sofrem com o problema.

E a situação da Amazônia?
Existe um problema muito grave na Amazônia que é a questão social. São quase 20 milhões de pessoas vivendo na região. Você simplesmente declarar “pára tudo”, não dá. Lá tem de tudo: grileiros, madeireiros, fazendeiros sérios e não-sérios e muita ocupação irregular. Você vê manchas de palafitas de dimensões extraordinárias. Belém tem só 2% de tratamento de esgoto. Daí aparece um secretário qualquer para dizer “ah, mas se você medir a água vai ver que ela é própria”. Claro, você está diluindo a sua merda com o Rio Amazonas inteiro. São milhões de quilômetros cúbicos de água. Todo o esgoto que Belém joga na água não consegue contaminar o entorno da cidade, mas que é um absurdo, é.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias