Crítica do presidente Jair Bolsonaro e preocupada com o futuro do Brasil, a socióloga e banqueira Maria Alice Setubal, 70 anos, acionista do Banco Itaú, vê hoje uma destruição das políticas públicas e uma deterioração nas relações entre o governo federal e as organizações da sociedade civil, as fundações e as empresas. Presidente do conselho da Fundação Tide Setubal, que realiza projetos de desenvolvimento em periferias, e do Gife, que reúne os maiores investidores sociais do País, ela percebe que o governo recusa o diálogo e fecha as portas para não escutar a sociedade. “O presidente, desde o primeiro dia do mandato, desqualificou as organizações da sociedade civil”, disse à ISTOÉ. “Não ouve a sociedade e busca cercear a atuação das ONGs”. Doutora em psicologia da educação, Neca participou de duas campanhas de Marina Silva e foi uma das fundadoras do partido Rede Sustentabilidade. É também idealizadora do Cenpec, centro de pesquisa que atua na melhoria da educação pública há mais de 30 anos. “O governo negou a periculosidade do vírus, sua existência e todas as medidas de prevenção”, afirmou. “A falta de coordenação nacional aumentou o número de mortes no País.”

Há uma destruição das políticas públicas pelo governo?
Em geral, costumo ser otimista e ter esperanças. Acho que tenho isso, mas não em curto prazo. Estamos vivendo um momento realmente dramático porque acumulamos crises na política, na economia e na sociedade. Há uma falta de coordenação nacional em questões primordiais, como saúde, educação e meio ambiente. Mas não vou desistir do Brasil. Aposto na nossa capacidade de superação, de encontrar caminhos, embora a curto prazo a situação seja muito difícil.

Em relação ao combate da pandemia, existe uma absoluta falta de coordenação nacional. Isso contribui para o aumento das mortes?
Claro que a gente não pode creditar todas as mortes à falta de coordenação. Assistimos a situações dramáticas em vários outros países do mundo. É um vírus que ninguém conhecia, que realmente ninguém sabia como tratar num primeiro momento. Acredito, porém, que a falta de coordenação nacional aumentou o número de mortes. Temos o presidente dando uma direção, os governadores dando outra e os médicos dando outra. A população fica atordoada e sentindo-se abandonada, o que pode trazer consequência políticas muito graves.

A gente está vendo uma dificuldade enorme com a vacinação, com falta de planejamento e insumos. Ao que se deve essa situação?
Enquanto vários outros países do mundo passaram a negociar as vacinas a partir de junho e julho de 2020, nosso governo não se preocupou com essa negociação. Estamos enfrentando asconsequências desse atraso. Estamos assinando contratos de compra, mas muito tarde. Sofremos com a falta de organização, de planejamento nacional, de enfrentamento da situação porque temos um governo que negou a periculosidade do vírus, sua existência e todas as medidas de prevenção.

Como a senhora vê hoje a relação entre as ONGs e o governo federal. Há algum diálogo?
Este governo, desde o primeiro dia do mandato, desde a campanha eleitoral, desqualificou as organizações da sociedade civil. Desqualificou as ONGs, as fundações, não ouve a sociedade e, ao contrário, busca de alguma forma cercear a atuação e as iniciativas desses grupos, que atuaram durante a pandemia de forma muito rápida e eficiente. A conexão com as políticas públicas em nível nacional, praticamente não existe mais, mesmo nas áreas em que tradicionalmente costuma haver maior proximidade, como educação e meio ambiente.

Esse afastamento das ONGs é uma manobra da guerra cultural armada pelo governo?
Essa desqualificação da atuação da sociedade civil, da participação dos diferentes conselhos que foram desmantelados, é parte de uma estratégia em que se criam inimigos. Esse governo gosta de criá-los para que seus seguidores possam atuar de forma conjunta contra determinados setores. Há uma guerra cultural em que os que não pensam da mesma forma são considerados inimigos. O diálogo fica bastante prejudicado. Sou uma pessoa de construir pontes, acredito na diversidade. A gente tem que saber e aprender a falar com quem não pensa igual. É preciso tentar entender porque, apesar da falta de coordenação nacional, da falta de empatia, o governo ainda tem um apoio significativo.

A senhora acredita nisso?
Pode estar diminuindo, mas continua. A gente tem que entender o que está acontecendo. Entender, conversar, ouvir, saber, não estou falando da extrema direita porque com esses não tem conversa. Mas precisamos entender porque ainda existe esse apoio ao presidente, apesar da crise. Temos que construir pontes com quem já votou no campo progressista e agora acredita no Bolsonaro para entender o que está por trás disso.

Como o jogo político vai mudar com a volta de Lula?
Lula já mudou todo o tabuleiro político. A volta dele é importante porque o PT é uma força fundamental no Brasil, mesmo com todas as perdas, com todas as dificuldades que passou, com os problemas graves de corrupção, que eu acho que têm que ser falados. Esse é o jogo da democracia e a gente tem que saber lidar com ele. O Lula é uma capacidade política incrível. Vamos ver, não sei como será isso. Mas certamente já mudou completamente o jogo, inclusive a fala do Bolsonaro.

É uma mudança para melhor?
Do meu ponto de vista sim porque se começa a ter alternativas fortes. Resta a gente observar como o PT e o Lula vão se comportar e ver se ele vai atuar como um político que está pensando no Brasil ou que está pensando só nele.

Como a senhora vê o impacto da pandemia entre os moradores da periferia?
No caso de São Paulo – porque o Rio é diferente, tem favelas muito próximas e a informalidade das praias –, se você quiser passar sua vida sem enxergar o abismo das desigualdades sociais, você consegue. A pandemia parece que quebrou essa invisibilidade e passou a mostrar todos os dias essa vulnerabilidade enorme que temos na cidade. Isso acabou sendo bom. Foi um movimento de enxergar que vivemos num país extremamente desigual. E temos o racismo também. No meio da crise acabamos vendo melhor as desigualdade e o racismo. Claro que enxergar não quer dizer que todo mundo virou a chave, mudou, mas muitos pararam para pensar, muita gente das diferentes elites, intelectuais, políticas passaram a enxergar melhor a situação das periferias.

Muita gente ignora as medidas de isolamento. A senhora vê relação desse comportamento com a classe social?
O problema acontece em todas as classes. A explicação mais óbvia é ideológica. Quem é bolsonarista adora afirmar que não tem medo, que não precisa usar máscara. E há também o fenômeno de negação da realidade. Ela é tão terrível que é bom acreditar no negacionismo do governo federal. Num país onde está tudo tão confuso essa vontade de negar aumenta. Outro dia fui convidada para uma festa de aniversário. Não acreditei. No fim, foi cancelada. A gente tem que pensar nisso. Essa situação tem a ver com a história do Brasil. As raízes desse individualismo que a gente tem estão lá atrás. Tudo é reforçado muito por esse governo, mas não é algo só dele.

Com a pandemia, muita gente está perdendo um tempo precioso de ensino e outros desistem de estudar. Qual é o futuro da educação?
Já perdi, literalmente, várias noites de sono por causa disso. Infelizmente, nos próximos dez anos, teremos consequências muito graves dessa pandemia em relação à educação. Nós já tínhamos uma dificuldade de aprendizagem muito grande, nossos indicadores estavam muito baixos quando comparados com os de outros países e a falta de condições das nossas escolas, primeiro as condições de acesso à internet, ficaram visíveis. Falta equipamentos e rede para a população mais pobre. A evasão agora é maior e vários jovens estão desistindo da escola.

Que falta faz o auxílio emergencial neste momento?
Na Fundação Tide Setubal nós apoiamos e acompanhamos grupos que estão no Congresso discutindo a renda básica, que deve ser tratada como política pública. Pensando em médio e longo prazo acho que teremos problemas muitos sérios com a questão da empregabilidade por causa das novas tecnologias. Apoiamos fortemente esse tipo de política, mas o desenho dela ainda está em discussão porque é complexo. Feita essa colocação, claro que é a gente é a favor de um auxilio emergencial porque as pessoas estão literalmente passando fome e acho que mais do que no ano passado. Em 2020, nós tivemos muitas doações e nesse ano elas diminuíram muito.

Há três anos a senhora trabalha com políticas de inclusão de minorias no Banco Itaú. Qual é o seu aprendizado?
Nunca tinha feito nada dentro do Itaú, sempre atuei participando do Conselho Consultivo da fundação, que agora se chama Fundação Itaú, mas na área de educação. Há 3 anos foi criado um Comitê de Diversidade dentro do banco e fui convidada para fazer parte, assim como outras pessoas independentes, além de executivos do banco. Gosto de participar desse conselho porque é uma discussão com pessoas ótimas, muito antenadas e têm programas interessantes de equidade racial, de inclusão LGBT e de pessoas com deficiência. Criamos semanas de discussões internas sobre esses assuntos e convidamos várias pessoas dos movimentos sociais para conversas com executivos, funcionários e colaboradores do banco.

O banco tem evoluído nessas questões?
É uma organização enorme, tem mais de 90 mil funcionários espalhados pelo Brasil, então sempre é difícil fazer mudanças porque vai muito mais devagar do que a gente gostaria. Acho que há ganhos. A própria seleção de trainees neste ano teve mais de 50% de mulheres e 45% de negros. Agora o grande desafio é o encarreiramento dessas pessoas. Nas funções mais altas, há alguns negros, mas ainda são poucos e mudar isso é lento porque a gente sabe que existe um racismo estrutural. O banco fez mudanças importantes na seleção em geral, como não considerar inglês como conhecimento eliminatório e buscar em outros lugares que não sejam Insper e FGV, por exemplo, pessoas para ocuparem os cargos. Houve mudanças, mas quando você olha os números, eles ainda deixam a desejar. O caminho é longo, mas há muita coisa interessante acontecendo.