Na reconfiguração global que se torna cada dia mais evidente com a guerra na Ucrânia, a Índia está em uma posição estratégica — e não apenas geograficamente. Pela projeção da ONU, se tornará o país mais populoso do mundo no próximo 14 de abril, com 1.425.775.850 de pessoas, ultrapassando a China, que envelhece e encolhe. Como metade dessa população tem menos de 30 anos, o crescimento econômico a longo prazo está no horizonte dos indianos. Enquanto isso, o primeiro-ministro Narendra Modi, que em 2024 completa dez anos no poder, flutua confortavelmente entre potências do Ocidente e do Oriente, e cada vez mais a Índia é cortejada por empresários e líderes de EUA, Alemanha e França, em busca de parcerias comerciais e apoio contra Rússia e China.

O mundo novamente se divide em dois blocos, a geopolítica volta a se sobrepor à geoeconomia e a Índia assume um papel central nesse redesenho, segundo Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM. “A Índia é aliada de EUA, Japão, Austrália. São países com os quais faz exercícios militares, que se contrapõem à presença chinesa cada vez maior no Indo-Pacífico”, explica. “Índia e China têm fronteiras em disputa, já foram à guerra por causa disso e volta e meia seus soldados entram em choque. A Índia é aliada do Ocidente contra a China, mas ao mesmo tempo é aliada da China e da Rússia no BRICS (grupo dos chamados países emergentes, que conta também com Brasil e África do Sul).”

Divulgação

Nessa correlação de forças, qual é o peso do país mais populoso do planeta? Apesar desse crescimento ter desacelerado, segue em linha ascendente, com força de trabalho garantida nas próximas duas décadas. Leva vantagem sobre a China, que tem população em queda depois de mais de meio século e o dobro de pessoas com mais de 60 anos. E perspectivas piores sobre corte de produção das indústrias por falta de mão de obra e aumento de despesas relacionadas ao envelhecimento. “A Índia é importantíssima para o Ocidente do ponto de vista político e militar, mas também por sua economia estar crescendo muito. Talvez até supere a chinesa a longo prazo”, complementa Rudzit.

Mas a Índia, na verdade, tem um exército de braços a baixo custo para a produção industrial, como observa Luciana Mello, professora do Centro Universitário IBMR-RJ e especialista em Relações Internacionais e Comércio Exterior. “É o motor da economia? Sim. Mas a elevação do poder de compra das pessoas só vem com bens e serviços, que estão em um nível mais sofisticado. E esse é um processo de décadas. Hoje a maior parte dessa população é chão de fábrica, com remuneração baixa.”

O crescimento populacional é positivo se o país se preparar para esse boom, destaca a professora, explicando que no caso indiano, ainda sofrendo sequelas da colonização britânica, vem da combinação de dois fatores: políticas para saúde e saneamento, que reduziram a taxa de mortalidade, e vácuo de políticas de controle de natalidade. E o crescimento econômico não necessariamente se reverte em benefícios para a sociedade. É preciso ver o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que no caso da Índia é péssimo: 132º de 191 países. “O PIB não reflete na qualidade de vida da população ou na perspectiva de melhora no futuro”, explica Luciana.

Todos querem a Índia

Também pela mão de obra em grande quantidade e barata, mas não apenas por esse aspecto econômico, empresários e governantes dos EUA, Alemanha e França se mostram mais agressivos na tentativa de formatar parcerias com os indianos. Os americanos levaram seu jato militar mais avançado, o F-35, para o tradicional show Aero Índia de Bangalore, em fevereiro, assim como outros caças e bombardeiros, para tirar os indianos dos braços dos russos, seus maiores fornecedores de armas desde a época da URSS. Na semana seguinte, o primeiro-ministro alemão Olaf Scholz seguiu pessoalmente à Índia para dizer ao colega Narendra Modi que isolasse a Rússia.

Economicamente, a partir da pandemia e da guerra na Ucrânia, os países mais desenvolvidos estão tentando encurtar caminhos e não depender tanto de terceiros. A Índia, que faz parte de várias cadeias de produção global — ligadas a suprimentos eletrônicos, de informática, de remédios e de vacinas —, não quer perder sua relevância, nem seus investimentos e postos de trabalho, observa o professor Rudzit. Nesse ponto, economia e política se encontram: “Pode ser que a Índia sofra com os países se fechando. Ou talvez ganhe com empresas que se transfiram para lá, porque a China está se contrapondo ao Ocidente. Esse é um processo sobre o qual pouquíssimos governos têm capacidade de atuação”.