PARADOXO Miguel Reale Júnior: “no governo Bolsonaro, a exceção virou regra” (Crédito:Agência Senado;)

Existe uma aberração antirrepublicana dada de mão beijada aos presidentes do Brasil. Trata-se do cartão corporativo, que lhes permite gastar… gastar… gastar o quanto quiserem do dinheiro público prestando contas mensalmente apenas do montante – não precisam sequer indicar despesa por despesa. Assim, se cartão corporativo nas mãos de presidentes é vendaval, nas mãos de Jair Bolsonaro é tsunami. O cartão da Presidência, criado na gestão de Fernando Henrique Cardoso, é, na verdade, uma excrescência. Há os mais comedidos, que já gastam muito; e há naturalmente os que esbanjam o nosso dinheiro de forma rockefelleriana. Bolsonaro, por exemplo, desde que pisou o Palácio do Planalto, tirou do erário, em média, R$ 709,6 mil por mês. Dois de seus antecessores, Michel Temer e Dilma Rousseff, despenderam, respectivamente, 60% e 3% a menos.

Imagine os milhões de brasileiros, sem comida no estômago e sem defesa social, que aguardam desesperadamente a liberação do auxílio emergencial, enquanto o presidente tem no bolso um simples pedaço de plástico que o torna milionário sem o menor esforço. Esses gastos, que deveriam ser explícitos, são sigilosos. Todos os presidenciáveis, desde 2001, gozaram desse direito – ou, melhor dizendo, desse privilégio: o cartão tornou-se uma maneira de se usar valores exorbitantes, tudo dentro da lei. “Bolsonaro fala que tem um tanto mensal para utilizar no cartão corporativo, mas isso não significa utilizar de qualquer maneira”, disse à ISTOÉ Luiz Fernando Prudente do Amaral, especialista em Direito Público e professor de Direito da FAAP, em São Paulo. “Fica claro que se fere dessa forma a moralidade pública”.

A falta de ética do presidente ao abusar das prerrogativas de seu cargo, que no Estado de Direito têm freios e contrapesos que ele ignora, está escancarada. Ele alega que o recorde de gastos deve-se ao tamanho de sua família – puro deboche, pois a quantidade de familiares não interfere na decência do exercício da função. “No governo Bolsonaro, o excepcional virou regra”, disse à ISTOÉ Miguel Reale Júnior, professor titular de Direito Penal da Universidade de São Paulo e ex-ministro da Justiça. Como o planeta da maioria dos políticos gira pelo oportunismo, em 2008, quando ainda era deputado federal, Bolsonaro se mostrou contra o cartão corporativo. Reale Júnior completa: “Agora, ele não só usa como decreta sigilo em relação às despesas”.

Só responde o que quer

Outra resposta que não diz nada, ou, quando diz, não se justifica, é a de que Bolsonaro só extrapolou o seu próprio limite de gastos com a finalidade de auxiliar brasileiros na cidade chinesa de Wuhan. Em fevereiro desse ano, ele tirou do erário R$ 1,9 milhão para, segundo o Palácio do Planalto, trazer de volta ao País, em aviões da FAB, trinta e quatro compatriotas que estavam, na época, no local de onde o vírus se alastrou para o mundo. Ocorre, no entanto, que nem nesse ato houve transparência. Ou seja, Bolsonaro gasta o que quer e justifica o consumo da maneira como quer. Isso implica não responder o básico: por que e com o quê ele gasta tanto? (embora, repita-se, nessa imoralidade seus antecessores lhes fazem companhia e, igualmente imoral, é a existência do tal cartão e o acobertamento para que os gastos não sejam especificados). Mesmo fazendo-se a conta do que foi usado com a viagem à China e a volta ao Brasil, sobra muito dinheiro torrado.

Há sempre o jeitinho brasileiro de não se responder aquilo que se quer esconder. “O direito à informação é um direito humano. O Estado tem obrigação de ser transparente com a população”, disse à ISTOÉ Denise Dourado Dora, diretora executiva da entidade Artigo 19, conceituada internacionalmente. Como tudo o que envolve Jair Bolsonaro, uma prática, quando já é ruim, vira péssima. Assim, o cartão corporativo presidencial que sempre foi uma festa, com ele se tornou uma orgia.