Antes da pandemia, já havia sinais evidentes de problemas com os programas sociais do governo Bolsonaro. A concessão do Bolsa Família estava represada e as filas de candidatos à aposentadoria no INSS se avolumavam. Com o novo coronavírus, o cenário se degenerou. Além das pessoas que já enfrentavam problemas com esses benefícios, foram acrescentados os que ficaram sem renda da noite para o dia. Foi criada uma tempestade perfeita para a população mais pobre, que se traduz nas filas gigantescas nas agências da Caixa Econômica Federal (CEF) em todo o País.

“Acredito que algum grau de fila nas agências da Caixa vai ter até o final do programa porque é da natureza nossa, da própria cultura” Onyx Lorenzoni, ministro da Cidadania (Crédito:EVARISTO SA)

O coronavoucher foi anunciado pelo ministro Paulo Guedes no dia 18 de março. Ele disse que havia sido uma determinação do presidente, para atender os 38 milhões de trabalhadores informais. “Estamos assegurando a proteção daqueles que estão sendo as principais vítimas da crise”, declarou. O governo pagaria três parcelas para usuários inscritos no Cadastro Único do Ministério da Cidadania. Estariam excluídos os usuários do Bolsa Família (que paga de R$ 89 a R$ 205 por mês) e do Benefício de Prestação Continuada (BPC). No final, com a ação do Congresso, o programa de auxílio emergencial atingiu R$ 600 (ou R$ 1.200 no caso de mulheres chefes de família) e beneficiou quase todos. Começou a ser pago em 9 de abril, mas, até agora, ainda deixa milhões à deriva. Na emergência, o que se viu foi um programa mal planejado e mal operado, concebido nas pranchetas de marketing político, que descambou em um espetáculo deprimente com desvalidos em busca do benefício.

“O governo está pagando para as pessoas ficarem em casa, mas o presidente conclama a população a fazer o oposto. É uma lição do que não fazer” Marcelo Neri, pesquisador da FGV

 

“Sempre fiz os meus bicos, mas tive que parar. Conheço gente que passa fome” Francisca Silva, 47, diarista (Crédito:RodrigoZaim)

Longas filas têm se formado diante das agências para sacar o dinheiro ou resolver as dificuldades e pendências. A população fica à mercê das intempéries, muitas vezes atravessando a madrugada. A CEF se preparou para fornecer o serviço via aplicativo de celular, mas muitas pessoas não têm smartphones em condições de operar esse recurso — que falhou seguidamente. Outras não têm registro civil nem acesso à internet (21% da população). O ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, reconheceu o problema, mas apenas parcialmente. Declarou também que pessoas mais idosas preferem ir nas agências. “Várias pessoas estão ficando de madrugada para depois venderem o lugar. Isso não é correto”, queixou-se o presidente da Caixa, Pedro Guimarães. Porém, em várias cidades, as filas não foram organizadas pelos funcionários do banco, mas por policiais, para tentar evitar aglomerações. Guimarães afirmou que o movimento nas agências já havia diminuído pela metade, mas as falhas na concepção e execução do auxílio são evidentes, e contrastam com as soluções mais eficientes adotadas nos EUA e na Europa — e mesmo em países como Índia e China, próximos da realidade social brasileira.

“É uma vergonha fazerem isso. Não posso ficar nesse sol, mas disseram para ficar na fila” Neusa Maria Alves, 56, dona de casa (Crédito:RodrigoZaim)

Medo da crise

O programa cresceu com a percepção do presidente de que sua popularidade desabaria. “O que está mantendo o Brasil longe de saque e de violência são os R$ 600”, disse. O valor liberado até agora, R$ 32,8 bilhões, é mais do que o dobro do previsto inicialmente. A Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado, calcula que a despesa vai chegar a R$ 96,5 bilhões, ao longo de três meses, apenas com as pessoas que já receberam o primeiro pagamento. Com 67 milhões de beneficiados, a conta chega a R$ 154,4 bilhões, o que equivale a cinco anos do Bolsa Família. Cinquenta milhões já receberam a primeira parcela, e o governo prevê que esse número chegue a 70 milhões. Simulações da IFI apontam que esse montante deve atingir 80 milhões. Dependendo do agravamento da crise, pode mesmo chegar a 112 milhões de pessoas. Além dos cadastrados no Bolsa Família (13 milhões de famílias), puderam recorrer ao auxílio parte dos inscritos do Cadastro Único (14 milhões de famílias). A maior dificuldade foi a inclusão dos “invisíveis” — 42 milhões. São os autônomos (24 milhões) e empregados sem carteira (18 milhões). Muitos não têm conta bancária e deveriam receber por meio de poupanças digitais. Apenas entre os desbancarizados, 2 milhões haviam recebido o benefício, mas não tinham resgatado o dinheiro até a terça-feira, 5.

“No aplicativo aparece que está tudo certo, mas na agência dizem que não está aprovado” Joana Gomes da Silva, 41, diarista (Crédito:RodrigoZaim)

Segundo o pesquisador Marcelo Neri, da FGV, a urgência fez com que o governo adotasse a checagem pelo CPF, e deixasse de aproveitar o Número de Indicação Social (NIS) ou a base que já havia sido privilegiada pela área há dez anos: o controle biométrico pelo título eleitoral. Fazer a checagem entre os diferentes bancos de dados para garantir que o beneficiário tivesse direito ao benefício tornou tudo mais moroso e complexo. Criar um sistema do zero explica em parte a confusão que se instalou. Mas o governo também errou na operação e se meteu em confusões. O auxílio foi adiado por vários dias porque Bolsonaro afirmou que seria necessária a aprovação de uma lei própria — o que foi negado pelo presidente da Câmara. Depois, a Caixa anunciou a antecipação da segunda parcela do auxílio, mas o ministério da Cidadania diz que não havia dinheiro. A pandemia criou uma situação de emergência também para os recém-desempregados. Pelo menos 200 mil trabalhadores não conseguiram dar entrada no seguro-desemprego porque as agências do Sistema Nacional de Emprego (Sine) de estados e municípios estão fechadas. Os que têm esse direito não podem pleitear o coronavoucher: ficaram sem nenhum dos dois benefícios. Não é apenas no aspecto técnico que o programa é repleto de contradições e problemas. O programa poderá causar frustrações para as famílias quando deixarem de receber o benefício. A ajuda de R$ 1.200 para as mães solteiras supera em seis vezes o valor médio do Bolsa Família. Não houve nenhuma preocupação com a educação financeira, aponta o pesquisador da FGV. “Em cidades como Marajá do Sena (MA), 66% recebem o Bolsa Família. Esse município ganhou na loteria. E depois?”

“Não precisa chegar de madrugada na agência. Muitos estão realizando saques nas agências pela primeira vez” Pedro Guimarães, presidente da CEF (Crédito:Marcos Corrêa/PR)

Drama nas filas

Enquanto isso, multidões se aglomeram em condições desumanas. A faxineira Francisca Silva, 47, recebia o Bolsa Família até o final de 2019, mas deixou de receber o benefício ao arrumar trabalho. Perdeu o emprego com a pandemia, e precisou fazer um novo cadastro no programa emergencial. Está há um mês indo diariamente a uma agência da CEF em São Paulo para tentar receber, sem sucesso. “Conheço gente que está passando fome. No momento, não é o meu caso. Enquanto eu estava trabalhando, não achava justo tirar de quem precisa”, diz. Neusa Maria Alves, 56, uma dona de casa diabética e hipertensa, conta que está há um mês tentando receber. Por causa de seus problemas de saúde, sua filha tem que ajudar. “Ela fica comigo porque senão caio na rua”, diz. Neusa, a filha e a neta, de seis anos, ficaram na fila por mais de uma hora e meia na última terça-feira, 5, na agência paulistana do Tremembé. “É uma vergonha fazer isso com a população. Uma fila desse jeito, todo mundo perto. Não posso ficar nesse sol, mas disseram para ficar na fila”, afirma. Depois de duas horas, conseguiu receber. “Lá dentro a moça disse que dei sorte. Em casa são cinco pessoas, agora vamos ao supermercado.” Muitos enfrentam as filas por causa dos aplicativos. É o caso de Joana Gomes da Silva, 41, diarista, que se cadastrou no app há um mês. Apesar das várias idas à agência, não conseguiu resolver o problema. “No aplicativo aparece que está tudo certo, mas quando chega na agência, eles dizem que não está aprovado. Vou ter que voltar após três dias”, conta nervosa. “Se o governo já liberou o dinheiro, porque a Caixa não paga logo?”

“Estou pedindo comida na rua, mas fiquei sabendo que nessa agência conseguiria” Welington Aparecido Soares, 38, ambulante (Crédito:RodrigoZaim)

O governo saiu de um projeto de contenção orçamentária, que prejudicou programas essenciais para os mais pobres, para a direção oposta. Adotou um programa pretensioso e caro que não interagia com as ações já em curso, baseadas em décadas de trabalho e estudo. Com a crise política e econômica que se agravam a cada dia por causa do presidente, o fim do programa emergencial vai se tornar um desafio também para a equipe econômica, que precisará reconstruir sua agenda de racionalização fiscal. E pode não conseguir. A tentação populista deve levar o presidente a atropelar novamente o trabalho técnico e a experiência adquirida — no fundo, desprezando a necessidade da população.

RodrigoZaim