São abissais as diferenças entre o que se pode chamar de gestão técnica e ideológica no campo nevrálgico da Educação. E ainda mais deletérios são os efeitos que esse ensino doutrinário, dirigido e obscurantista pode causar sobre a formação de nossos jovens. A experiência negativa está posta. Em menos de 100 dias de gestão, o MEC foi tomado pelo caos, com o risco de alienação completa dos corpos docente e discente das instituições públicas em especial. O Brasil assistiu ao descalabro do agora ex-ministro Ricardo Vélez Rodriguez com o seu despreparo administrativo e quase nenhum conhecimento de causa para tocar uma área tão complexa. O que lhe faltava em tarimba e bom senso sobrava em trapalhadas e aberrações verbais — para não dizer ignorância, no sentido mais literal da palavra. O colombiano de nascimento Vélez, que mal e parcamente fala o português e que tachou os brasileiros de “canibais” por roubarem hotéis e aviões (na sua concepção), é o mesmo que desejava mudar o entendimento do golpe militar nas apostilas escolares e que chegou a exigir a filmagem de alunos perfilados entoando, no primeiro dia de ano letivo, o lema de campanha do chefe Bolsonaro — “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” —, em uma clara e ilegal invasão de privacidade dos jovens para fins abjetos de propaganda política. Ainda bem que foi desautorizado ao menos nessa patacoada. O sainte notabilizou-se por demissões em série (14 auxiliares diretos banidos em 27 dias), desorganização das repartições de aprendizado e paralisia do esquema de distribuição de material didático, repasse de verbas e estruturação de equipes. Desgovernou tudo e levou o MEC ao quase colapso em tempo recorde. Restaram disputas intestinas de grupos rivais: os “olavistas”, de assessores despreparados vinculados ao guru oficial Olavo de Carvalho, radicado na Virgínia (EUA), contra os militares. Ideias fundamentalistas converteram-se em padrão de referência em ambas às direções. As duas correntes estão motivadas a aparelhar o sistema de maneira lamentável. Intrigas, discussões e brigas desses guerreiros culturais, que formam alas da modelação ideológica bolsonarista, podem desembocar numa perigosa partidarização ética do ensino. Será um retrocesso sem precedentes. Não é possível que prevaleça no setor o intento dessas falanges de arrivistas. Precisamos passar uma borracha nos erros de orientação pedagógica. O que se observou nos últimos tempos com a pavorosa temporada do demitido Vélez encontra, no extremo oposto, uma experiência extraordinariamente bem-sucedida (e que deveria servir de modelo) no trabalho daquela que é talvez a mais aguerrida defensora da educação de qualidade no Brasil, Viviane Senna, à frente do Instituto Ayrton Senna – uma ONG que desde o nascedouro vem apresentando resultados promissores no resgate de jovens em todos os níveis do ensino. Há de se perguntar por que as autoridades competentes não se miram, e até copiam, o exemplo louvável do Instituto? Justamente no dia que Vélez ficou sabendo que levaria o bilhete azul, na sexta-feira 5, ele e Viviane — por uma dessas coincidências da vida — estiveram juntos em um seminário voltado para empresários no qual foi possível notar, pelas falas subsequentes de ambos, a distância de patrimônio intelectual e bagagem de ensino que carregavam. Viviane, em sua apresentação àquela plateia de empreendedores, deu um diagnóstico preciso. Mostrou que o Brasil tem 50 milhões de alunos no sistema – uma Espanha de crianças só na escola. Nesse universo, apenas cinco em cada dez concluem o ensino médio, levando o País a perder metade do seu potencial de formação pelo caminho do ciclo básico. Dos que chegam lá, e concluem essa fase, apenas três sabem se expressar na língua portuguesa e apenas um domina a matemática como deveriam. Em outras palavras: para 90% dos jovens brasileiros o modelo preconizado pelo MEC não funciona. E não é por falta de recursos. Ao contrário. O País gasta hoje R$ 1 bilhão a cada dia na área, incluindo sábados e domingos, ou algo próximo a 6% do PIB nacional. Em Educação investimos muito (mais do dobro da Saúde) e entregamos pouco. Há tempo é assim. O custo econômico e de produtividade — uma vez que esses futuros profissionais saem despreparados da banca escolar para o trabalho — é imensurável. Como alerta Viviane, não se consegue transformar investimento em produtividade: há 30 anos o nível de produtividade brasileira segue mais ou menos nos mesmos patamares, muito embora a linha do tempo dos jovens na escola tenha sido significativamente ampliada. É necessária uma mudança gigante e Viviane tinha encaminhado ao presidente Bolsonaro, desde a sua posse, uma trilha com quatro sugestões baseadas em dados científicos para se alcançar esse objetivo. Quais sejam: maior concentração de esforços na alfabetização, investimento no professor (responsável por 70% do aprendizado), gestão eficaz e políticas públicas voltadas para o aprimoramento técnico. É bom nesse aspecto distinguir os modismos de ensino ou conveniências partidárias do que realmente se entende como qualificação da base didática. As mudanças movidas a convicções ideológicas tendem a naufragar. Para efeito comparativo à exposição de Viviane, é curioso observar o que Vélez tem a dizer a respeito. Dirigindo-se a mesma plateia, para o estupor da maioria, ele tirou do bolso e leu um discurso pré-elaborado, repleto de platitudes sobre a missão da sociedade, e concluiu com promessas burocráticas de abertura de uma secretaria especial de alfabetização para tratar das carências — leia-se, novo cabide de empregos. Não entendeu mesmo nada. Estava ali, de maneira cristalina, a distância que nos separa de um bom gestor para o MEC. Velez caiu, mas o novo titular da pasta, Abraham Weintraub, não parece ter um tino muito diferente do dele. Compartilha da matriz de pensamento do antecessor, embora se mostre menos caricato. Economista por formação, com experiência na área financeira, egresso da equipe do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, não é definitivamente do ramo. Weintraub chegou a declarar tempos atrás que os “comunistas” estão no topo das organizações financeiras, no comando da mídia e das grandes empresas. Por essa reflexão enviesada ele inventou uma jabuticaba: banqueiros e empreendedores adeptos do marxismo cultural. Uma contradição em si. O apostolado teórico que impõe princípios radicais, conservadores e repletos de preconceitos, avança como um mal que pode corroer os sustentáculos da educação moderna. Não é evangelizando hordas de estudantes que se trilha um caminho virtuoso nesse campo. A catequização pretendida por Bolsonaro, que chegou a declarar na semana passada que os jovens não podem ficar aprendendo política no colégio, vai contra os princípios basilares da democracia. Como irão votar direito essas futuras gerações caso pautem seu aprendizado única e exclusivamente pela cartilha de crenças pessoais do mandatário, em muitos aspectos distantes da realidade? Educar não é doutrinar.