Uma das conquistas mais marcantes dos dois primeiros mandatos do governo Lula, entre 2003 e 2010, foi o protagonismo do Brasil nas mesas de discussão mundo afora e a inserção do País em um cenário de otimismo com a globalização junto ao crescimento chinês. As condições geopolíticas do próximo ano, contudo, não poderiam ser outras e pouco lembram a chamada “era de ouro” da diplomacia petista então comandada pelo chanceler Celso Amorim. O terceiro mandato de Lula terá dois eixos principais no campo internacional: aproximação com os países da América Latina e fortalecimento da agenda ambiental. E vai além: Mauro Vieira, o ministro escolhido para comandar o Itamaraty a partir de 2023, quer fortalecer e restaurar a relação brasileira com os Estados Unidos e a China, os dois gigantes mundiais.

“Hoje nós estamos dizendo ao mundo que o Brasil está de volta. Que o Brasil é grande demais para ser relegado a esse triste papel de pária do mundo”, disse Lula em seu discurso após a confirmação do resultado da votação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A fala, já evidenciada pelo futuro mandatário em outras ocasiões é importante, já que tem como objetivo enterrar de vez o legado dos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, comandado pelo chanceler Ernesto Araújo, que tripudiou o maior parceiro comercial do Brasil, a China, e declarou alinhamento total aos EUA de Trump, sem que isso trouxesse ganhos reais para o Brasil.

NOVO ITAMARATY Mauro Vieira consegue feito inédito: uma mulher será a número 2 do órgão (Crédito:Divulgação)

Para Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador em Londres e em Washington, a aproximação com os países da América do Sul é natural. “O Mercosul está uma bagunça pela ausência de liderança brasileira. Não pode o Brasil e a Argentina ficarem quatro anos sem conversar, isso é um absurdo, mas algo que será superado com o diálogo”, explica Barbosa. “A questão ambiental é um tema global que afeta a todos e o Brasil sempre teve uma participação importante na discussão e recolocar o País como protagonista, inclusive para receber recursos externos, como o fundo amazônico é certamente uma prioridade”, diz.

A preocupação com a Amazônia, vale ressaltar, é também econômica. Em um cenário em que a União Européia está aprovando medidas restritivas a produtos agrícolas do Mercosul, dentro da legislação de desmate de florestas e de descarbonização de empresas europeias (Mecanismo de Ajuste da Fronteira de Carbono, ou CBAM, na sigla em inglês), firmar o esperado acordo Mercosul-UE deve trazer ganhos relevantes aos países do bloco. A ratificação do documento junto ao Parlamento Europeu, entretanto, pode demorar a sair, caso Argentina e Brasil queiram realmente reabrir a discussão e rever cláusulas comerciais e ambientais previamente discutidas. “Será difícil nesse cenário de guerra na Ucrânia conseguir melhores condições, o ideal seria ratificar o acordo o mais breve possível”, disse um diplomata em condição de anonimato à reportagem.

O futuro chanceler brasileiro que já ocupou a pasta durante o governo Dilma, é visto com bons olhos pelo corpo diplomático brasileiro no sentido de ser um resgate à tradição sem ser tão ideologicamente associado ao PT, caso de Celso Amorim. O embaixador Mauro Vieira já anunciou as três primeiras viagens internacionais de Lula depois de assumir a Presidência: Argentina, China e Estados Unidos. Todas devem ocorrer logo nos primeiros meses do novo governo, o que mostra uma preocupação em construir pontes bastante desgastadas.

Ainda segundo Vieira, as relações com a Venezuela comandada pelo ditador Nicolás Maduro serão restabelecidas no primeiro dia da gestão petista, algo que pode trazer desconforto internamente. Porém, segundo dois diplomatas ouvidos por ISTOÉ, o objetivo é reabrir uma embaixada no país e trabalhar em prol do estabelecimento de um regime democrático na região. A Venezuela está suspensa do Mercosul e os medos da extrema direita, de que o Brasil, através do BNDES, iria sustentar o regime venezuelano, não passam de teorias conspiratórias.

Outro ponto importante no “novo e velho Itamaraty” é a ênfase na defesa dos direitos humanos, das mulheres e das minorias. Um dos sinais de modernidade na pasta foi o anúncio da embaixadora Maria Laura da Rocha como a nova secretária-geral do Itamaraty, primeira mulher a ocupar o posto de número 2 da hierarquia do Ministério das Relações Exteriores. Depois de quatro anos de total desvio dos ideais que sempre sustentaram a instituição com dois séculos de existência, o começo parece promissor, ainda que longe de ser fantástico.