Após mais de um século de história, pelas ruas e estradas brasileiras, a Ford desistiu. A montadora americana, cujo nome é quase um sinônimo de automóvel em todo o mundo, fechará suas três fábricas no País. Uma em Taubaté, interior de São Paulo, outra em Horizonte, no Ceará, e a mais nova em Camaçari, na Bahia. Não foi sua primeira desistência. Em outubro de 2019, a companhia já indicava o caminho que tomaria ao encerrar as atividades da icônica fábrica de caminhões em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Ao lado da Volkswagen e da General Motors, a unidade era um símbolo da industrialização brasileira incentivada pelo presidente Juscelino Kubitschek, que comparava a produção de automóveis à inserção do País no clube de nações desenvolvidas.

“A falta de medidas pode tornar o País um mero importador de automóveis” Cassio Pagliarini, consultor da Bright Consulting

A decisão da montadora deverá ceifar cinco mil empregos diretos. Número que pode ser multiplicado por cinco contando as vagas indiretas na cadeia de produção puxada pelas montadoras, que vai desde o aço, peças, plástico, até as concessionárias. A perda de empregos, no entanto, não é o único fato a lamentar. A saída da Ford é apenas um sinal de uma perda muito maior, a do protagonismo brasileiro na indústria automobilística mundial. O país, que participou do desenvolvimento do motor flex e desenvolveu alternativas de combustível como o álcool pode ficar de fora da revolução tecnológica vivida pelo setor, com avanço dos carros elétricos e veículos autônomos. Ao ceder terreno, o País tem sua imagem arranhada e confirma a falta de um plano estruturante para toda a indústria no Brasil, que vem perdendo competitividade na produção de bens com maior valor agregado.

DESEMPREGO Funcionários protestam em Taubaté (SP) após o anúncio do corte de 5 mil empregos na empresa (Crédito:ROGÉRIO MARQUES)

“O atual governo está transformando o Brasil em uma grande fazenda”, desabafou o governador do Bahia, Rui Costa. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, elevou o tom e acrescentou que o “fechamento é uma demonstração da falta de credibilidade do governo brasileiro, de regras claras, de segurança jurídica e de um sistema tributário que se tornou um manicômio”. Para o especialista tributário da consultoria Mazars Luiz Carlos dos Santos, mesmo forte, a expressão de Maia define bem o complexo sistema tributário brasileiro, que leva os impostos a responder por 30% dos preços dos veículos. Para o presidente Jair Bolsonaro, a Ford fechou porque queria subsídios que não recebeu.

Especialista no setor automotivo, o consultor Cassio Pagliarini, da Bright Consulting, admite que o ambiente de negócios no Brasil é extremamente complexo, com regras e taxas que dificultam a vida das empresas. “Isso precisa ser resolvido, mas é preciso orquestração política”, diz ele, que trabalhou por 25 anos na Ford e em outras montadoras. “A falta de medidas pode tornar o País um mero importador de automóveis depois de ser aquele que desenvolvia soluções”, diz. Para a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a decisão da Ford é um sinal de alerta para todos os governos — federal, estadual e municipal —, além do Congresso Nacional, sobre a necessidade de se aprovar medidas urgentes, entre elas a reforma tributária. Em nota, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) diz que a decisão da Ford só corrobora o que a entidade vem alertando há mais de um ano, sobre a ociosidade e a falta de medidas do governo.

Morte anunciada

Os problemas da Ford, porém, não se limitam ao Brasil. A empresa também deixou a Austrália, após 90 anos no país. No Brasil, desde o fim da parceria com a Volkswagen, conhecida como Autolatina, ela tentava se manter atuante, o que incluiu a instalação da nova fábrica, disputada por vários estados na chamada “guerra fiscal”. Com maiores isenções, a Bahia trouxe a unidade para Camaçari, onde passou a ser produzido o EcoSport. Desde então a Ford não conseguiu outro sucesso e viu sua participação cair, saindo do primeiro pelotão onde estão GM, VW e Fiat e ficando junto com novatas como Hyundai e Toyota. “Só incentivos fiscais não resolvem. Sem vendas a equação não fecha. Veremos mais empresas nesse caminho”, diz o consultor da MRD Consulting, Flavio Padovan, citando ações da Audi e da Mercedes Benz que também anunciaram o fim de produção de carros no Brasil.