Alçado ao comando do Ministério da Fazenda como uma cartada de Lula para se impor ao mercado, Fernando Haddad fecha o primeiro mês de governo com um voto de confiança do setor. O petista não entregou o plano de voo dos sonhos do mundo dos negócios, mas ganhou pontos ao deixar o tom professoral de lado em conversas a portas fechadas com agentes financeiros e ouvir ponderações de todas as escolas econômicas. Sobretudo, mostrou-se um nome comedido, estabelecendo o compromisso do governo com uma âncora fiscal crível e correndo para suavizar declarações espinhosas do presidente, capazes de gerar fortes turbulências. Para agentes econômicos, Haddad tenta demonstrar que não se portará como um inimigo da Faria Lima, apesar de Lula tratá-la como um bode expiatório.

Espera-se que, pela proximidade com Lula, o ministro se livre de vez da pecha de “poste”, barre iniciativas esdrúxulas e demonstre influência sobre o presidente, que reitera de forma recorrente ser o responsável por bater o martelo sobre os rumos do País. Alguns especialistas reconhecem ser cedo para exigir do governo um plano econômico consolidado e, por isso, não houve grandes protestos quanto ao primeiro projeto apresentado, que criou um novo “Refis” e estipulou a reversão de desonerações feitas no ano passado, sobretudo do PIS/Cofins de combustíveis, com foco na ampliação de receita, em vez do corte de despesas. Todos viram com bons olhos a promessa de Haddad, anunciada em Davos, de que o FMI participará da construção do instrumento que substituirá o teto de gastos. Com isso, houve a sensação de que a medida não será elaborada no “puxadinho” do PT, o que a tornaria frágil. Há, ainda, uma grande esperança em torno da Reforma Tributária, ancorada na presença de Bernard Appy na Fazenda.

Todos demandam imediatismo, no entanto, ao menos na contenção das intempéries do chefe do Palácio do Planalto. Provas de fogo estão no horizonte. Uma das principais preocupações centra-se no sistema de metas de inflação, criada no Plano Real, peça-chave para a previsibilidade — para 2023, a meta é de 3,25%, com intervalo de 1,5 ponto porcentual para cima ou para baixo. Para os dois anos subsequentes, por ora, o alvo é de 3%. Lula disse considerar a meta demasiadamente baixa e apontou que, no formato atual, ela prejudica o crescimento da Economia. A declaração alarmou a Faria Lima. Levantou a suspeita de que o governo pretende ampliar o alvo, uma vez que, em junho, o Conselho Monetário Nacional (CMN), responsável pela fixação da meta, passará a contar com votos dos ministros da Fazenda e do Planejamento. Diante da reação, Haddad recorreu a um tom ameno e declarou que o assunto precisa ser ponderado com “sobriedade” e “olhando para o mercado”.

DE SAÍDA? Nova meta de inflação pode afastar o titular do BC, Roberto Campos Neto (Crédito:Adriano Machado)

Especialistas analisam que a mudança seria vista como uma interferência na política monetária do Banco Central, configuraria um “tiro no pé” e, no final das contas, pesaria no bolso de toda a sociedade, com especial impacto no da população carente. “O resultado tende a ser o oposto do que o PT quer. Os juros futuros podem subir e o câmbio vai depreciar, porque a confiança cai. O câmbio depreciado afeta os preços dos bens comercializados para os civis. Tudo isso resulta numa inflação mais alta, sem correspondência com o esperado aumento da atividade econômica”, argumenta o ex-ministro Maílson da Nóbrega. “Sabemos que as classes menos favorecidas não têm os meios para se proteger da aceleração da inflação”, alerta.

Há receio, inclusive, de que a interferência direta leve à saída de Roberto Campos Neto, que exerce mandato fixo no BC e, por isso, não pode ser demitido. Maílson, no entanto, vê como baixas as chances de o presidente da instituição pedir para deixar o cargo. “Ele tem razões históricas para ficar. A primeira e, mais importante: Campos Neto é o primeiro presidente de um BC independente e experiências internacionais demonstram que esse primeiro passo estabelece parâmetros para o futuro. Na Argentina, por exemplo, o BC é independente, mas os presidentes se curvam aos interesses do peronismo. Ou seja, no país vizinho, na prática, a independência foi destruída. Outro ponto: a ideia da independência surgiu no regime militar, quando o avô dele era ministro do Planejamento.”

A retomada das relações externas com parceiros históricos da América do Sul é outro tema acompanhado com lupa. A discussão sobre uma moeda comum entre Brasil e Argentina para fomentar trocas comerciais não agradou o mercado. Segundo sublinham os especialistas, os dois países têm taxas de juros, de inflação e situações fiscais radicalmente diferentes. Não é exagero. Em 2022, a Argentina registrou uma inflação acumulada de 94,8%, enquanto, no Brasil, o percentual ficou em 5,79%. “A moeda comum não traz benefícios para o Brasil e foge do que precisamos fazer em termos de política econômica: olhar para a União Europeia e a OCDE. Qual o sentido de dar um abraço de afogados com a Argentina?”, critica Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. “Não sabemos exatamente qual seria o arco dessa moeda, diferentemente do dólar, que tem lastro nas políticas monetária e fiscal norte-americana. Não seria muito crível.”

Espera-se que Haddad se livre da pecha de “poste”, barre ideias esdrúxulas e tenha influência sobre Lula

Vale frisa que a “cereja do bolo” foi o anúncio de que o BNDES voltará a financiar projetos no exterior. Lula citou objetivamente a possibilidade de o banco aplicar dinheiro no gasoduto de Vaca Muerta, envolto em polêmicas sociais e ambientais. Haddad chegou a pontuar que a negociação reduziria a dependência do Brasil da Bolívia e buscou justificar o investimento: haveria um “sistemas de garantias”. O economista vê um erro estratégico. “Se fosse décadas atrás, faria sentido. Mas, com a descoberta do pré-sal, o Brasil tem grandes reservas de gás natural e faria mais sentido o BNDES focar em investimentos de longo prazo em solo nacional para a extração, escoamento e construção de terminais de gás liquefeito para exportação”, analisa. “Tenho a impressão de que a proposta de Lula tem mais um caráter político do que econômico”. O papel central de Haddad, portanto, será justamente ouvir o mercado e se posicionar como um anteparo.