A ORIGEM: O artista e uma de suas obras icônicas: o ovo que simboliza a imortalidade
A ORIGEM: O artista e uma de suas obras icônicas: o ovo que simboliza a imortalidade

O arrebatamento toma conta de quem chega à Oficina Brennand, no bairro da Várzea, subúrbio do Recife. Isolados da cidade por um cinturão de mata densa, os galpões onde funcionaram a Cerâmica São João, fundada em 1917, hoje formam um singular santuário dedicado às artes. Por trás de cada detalhe dessa obra colossal está o pintor, escultor e ceramista Francisco Brennand, 89 anos. A Oficina Brennand é um complexo arquitetônico formado por vários núcleos construtivos que ocupam cerca de 15 mil metros quadrados. Há um jardim projetado por Burle Marx, uma capela restaurada por Paulo Mendes da Rocha, um Templo do Sacrifício que remete ao massacre das civilizações pré-colombianas, galerias distintas dedicadas à cerâmica e à pintura, lagos, fontes e totens, formando um impressionante museu aberto. No total, mais de mil peças
de Francisco Brennand podem ser vistas — e tocadas.

É impressionante como esse artista visionário conseguiu criar tanto a partir do barro. Repleta de citações literárias, filosóficas e religiosas, sua obra se articula formando um só monumento, tão grandioso quanto inefável. Protegido pela muralha sobre a qual um exército de “pássaros roca” se posta em sentinela, um imponente pátio abriga um templo e uma praça de esculturas. A inspiração para os pássaros-guardiões remonta a uma passagem de “As Mil e Uma Noites”. Com fonte, espelho d’água e cisnes negros, a Praça Mítica exibe releituras de Adão e Eva, Vênus, imagens de santos, animais fantásticos e seres imaginários. Ao lado da praça está o Templo ao Ovo Primordial, obra de significado emblemático para Brennand. “O ovo é o símbolo da imortalidade. As coisas são eternas porque se reproduzem”, afirma o artista. O ovo, tão bem-guardado no templo, é também um marco na reocupação da antiga cerâmica que o pai de Francisco Brennand fundou quando tinha apenas 20 anos. “Na minha infância, essa fábrica era palco de brincadeiras com meus irmãos. Um lugar misterioso. Os fornos, na nossa imaginação, tinham certa semelhança com catacumbas”.

Com as mãos sobre a inseparável bengala, o artista conta como surgiu a ideia de fazer de lá seu ateliê. “Um belo dia, atravessando a ponte que ligava nossa outra propriedade ao lado de cá, eu encontrei essa fábrica em ruínas. Senti que era meu dever recuperá-la”. Enchendo-se de coragem, foi dizer ao pai o que pretendia. “Estava com 45 anos, era imensamente jovem e absolutamente irresponsável”, admite. Com a anuência do pai, cuja única condição foi que Francisco não pedisse ajuda financeira aos irmãos, o artista deu início à obra de sua vida. Reativou a fábrica e nela passou a produzir uma cerâmica pouco ortodoxa. Ele misturava materiais que, levados à temperatura de 1400ºC, fundiam-se num espécie de rocha, dura e resistente como o quartzo.

ALMA AO DIABO

Foi essa cerâmica original que garantiu os recursos para Oficina nos primeiros anos. Procurado por um grupo de jovens arquitetos que conheciam seu trabalho, Brennand venceu a concorrência para fornecer o revestimento do edifício-sede da então poderosa Sudene. “Eu não vendi minha alma para o Diabo. Nunca deixei de ser um artista para ser um empresário”, diz ele.

Sua cerâmica faz sucesso em edifícios de todo o País. Com o dinheiro entrando, Brennand viu que era possível manter parte das peças que produzia. Assim, os vazios que resultavam da retirada de equipamentos industriais da Oficina foram preenchidos com esculturas e murais. Ainda assim, seu sanutário permaneceria secreto por muito tempo. “Onze anos depois de eu ter restaurado a fábrica, um motorista de táxi trouxe quatro turistas de São Paulo. Eles ficaram admirados. Lá fora, o taxista me abordou e disse: ‘Isso aqui parece o Egito’. Eu entendi que ele estava em busca de uma analogia para a palavra mistério. Percebi que deveria seguir trabalhando daquela mesma forma”.

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VOLTA ÀS ORIGENS

Brennand nunca se considerou um escultor, uma vez que não esculpe e sim molda peças no barro. “Eu aprendi por tabela, com os artesãos e especialistas em porcelana vindos da Europa e dos Estados Unidos para trabalhar com meu pai. Sou um artista que soube tirar proveito do conhecimento não só familiar como também dos estrangeiros que andaram por aqui”, afirma. “À medida que eu estudava a origem dessas terras, onde se inscreve a Batalha de Guararapes, pude compreender que esse lugar deveria ser eternizado. Aqui há uma história a glorificar. Tem a dimensão do sagrado”.

Hoje, com as limitações impostas pela idade, Francisco Brennand se dedica exclusivamente à pintura, sua atividade original como artista, iniciada em 1942. Então com 15 anos, foi encarregado de acompanhar o restauro de uma coleção de pinturas
que seu pai havia adquirido. O restaurador, Álvaro Amorim, um dos fundadores da Escola de Belas Artes de Pernambuco, incentivou o jovem a pintar. Em 1947, ao participar do Salão do Museu de Arte do Estado, o então aprendiz ficou em primeiro lugar — feito que repetiria no ano seguinte.

De lá para cá são mais de 90 exposições em todo o mundo, além do reconhecimento da crítica e de outros artistas, caso de sumidades com Ariano Suassuna e João Cabral de Melo Neto. O escritor Jorge Amado, que conhecia pintura profundamente, jamais poupou elogios ao pernambucano: “Mestre Francisco Brennand, hoje o principal artista do Brasil, um dos grandes da arte contemporânea”.

Foto: Fred Jordão


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