Se Rui Barbosa estivesse vivo, Vladimir Putin já teria deixado em paz a Ucrânia e se veria longe do poder na Rússia. O franzino baiano de um metro e cinquenta e oito centímetros de altura, cujo centenário de morte completou-se na quarta-feira 1, tornava-se gigante quando se tratava de banir líderes invasores – era pacifista, mas com um chicote intelectual na cabeça e, caso preciso, outro mais doído nas mãos. Por isso, nos tempos atuais, quando assistimos ao avanço de regimes autoritários e imperialistas à direita e à esquerda, mais que nunca é imprescindível a reflexão sobre a importância da atuação de Rui Barbosa. Ele nasceu em Salvador, em 1849, e faleceu em Petrópolis, em 1923. Foi tão democrático, que até o seu prenome sempre se grafou de duas maneiras: com y ou com i — muito embora você, Rui, deixasse transparecer uma franja de vaidade quando escrito com y, conforme registrou em carta recém-descoberta ao Barão do Rio Branco. Mas eu vou utilizar o i, e o faço porque considero o y uma letra que mal se equilibra numa perna só, mais cedo ou mais tarde vai acabar caindo mesmo.

Rui Barbosa passou a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, então capital do País. Foi um dos maiores polímatas brasileiros, e dentre suas áreas de trabalho destacam-se a advocacia, diplomacia, oratória, política e deontologia jurídica — estudo da ética do dever e da obrigação, criado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham. O nosso personagem atravessou o tempo como intransigente defensor do regime republicano, das liberdades individuais, adepto do liberalismo econômico (desfiava com razão um rosário de palavrões contra o comunismo) e militou nos círculos abolicionistas da escravatura – pena que nesses dois últimos itens tenha patinado. Como ninguém, Rui Barbosa impôs, projetou e engrandeceu o nome do Brasil em todo o mundo.

NOVO RUMO A reunião só levaria a sério as grandes potências: Rui Barbosa fez com que todos olhassem para o Brasil (Crédito:Divulgação)

Proclamada a República pelo marechal Deodoro da Fonseca, em 1889, Rui Barbosa tornou-se ministro da Fazenda e da Justiça. Com a primeira pasta veio a primeira escorregada: a política econômica do encilhamento. Consistia ela na emissão desenfreada de dinheiro, e o País afogou-se em crise. O segundo tropeço deu-se quando Rui mandou queimar registros sobre a escravatura. À época, o argumento era que ele estava impedindo, dessa forma, que a União tivesse de indenizar ex-proprietários de escravos. Hoje é imperdoável seu gesto, apagando da história parte da selvageria da servidão forçada. Deodoro, em meio à pane econômica e à crise social, renunciou. É o momento em que Rui Barbosa – em cuja “cabeça Deus acendeu um vulcão de republicanismo”, nas palavras do farmacêutico e escritor José do Patrocínio – vai se fortalecer e brigar pelo Estado de Direito. Juntamente com Prudente de Morais, ele redigira a primeira Constituição da República e o artigo 42 dizia que, no caso de vacância da Presidência antes de dois anos de governo, teriam de haver eleições. Ocorre, no entanto, que o vice-presidente, marechal Floriano Peixoto, apoderou-se inconstitucionalmente do cargo. E nele ficou.

L’AFFAIRE DREYFUS Jornal francês mostra o capitão humilhado: Rui ajudou a provar a inocência (Crédito:Divulgação)

O Congresso votou por aquilo que denominou “emudecimento político”, revoltando Rui que era, e é, Patrono do Senado – nada mais justo, portanto, que a homenagem que a Casa lhe prestou em Brasília na semana passada (ele é igualmente Patrono do TCU). A sua luta civilista, que pregava a submissão das Forças Armadas ao poder civil, começava então a se desenrolar contra o militarismo. Uma parte da Marinha se sublevou na Revolta da Armada e, posicionada na Baia da Guanabara, colocou abaixo uma torre da igreja da Lapa. O fato foi retratado em samba, tempos depois, por Wilson Baptista: “falta uma torre na igreja/vou lhe contar, meu irmão/foi na briga com Floriano/foi um tiro de canhão/e nesse dia/a Lapa vadia/teve a sua glória/deixou o nome na história”. Rui assumiu a defesa dos revoltosos e no habeas corpus que redigiu chamou o presidente de vice-presidente. O marechal disparou: “se o STF conceder habeas corpus, eu quero ver quem dará habeas corpus ao STF”. Rui Barbosa seguiu para o exílio, tendo Londres como destino, e lá começou a fazer o nome do Brasil estrelar em todo o mundo.

Nessa época estava preso na Ilha do Diabo o capitão francês Alfred Dreyfus, acusado de traição à pátria. Tratava-se do famoso L’Affaire Dreyfus. Rui se uniu ao escritor e advogado Anatole França e provou (o chicote intelectual do qual se falou) que Dreyfus era um inocente perseguido por ser judeu. De volta ao Rio de Janeiro, ele seguiu sua trajetória, até que em 1907, a convite do Barão do Rio Branco, representou o Brasil na Conferência de Paz de Haia, na Holanda. Quando se levantou para discursar, mais uma vez o chicote do cérebro desmontou a arrogância dos EUA, da Inglaterra e Alemanha. Essas nações pretendiam criar um tribunal de arbitramento integrado por potências. Rui foi um leão e consagrou-se ao demonstrar que isso incentivaria a corrida armamentista. Esperava-se e temia-se em Haia o protagonismo do barão alemão Marschall Von Bieberstein. Pois bem, ele desmoronou diante de Rui. O planeta se curvou ao Brasil. Mais uma vez retornando ao País, ele continuou planejando ser presidente da República — houve duas vãs tentativas, a principal delas na campanha civilista contra o militar Hermes da Fonseca. Certa vez, foi visto na rua berrando: “até maluco se elege presidente, e eu não consigo!”. Tinha lá suas razões. Numa reunião no Catete, o presidente Delfim Moreira ficara atrás de cortinas observando quem transitava pela sala. O incansável civilista Rui Barbosa de Oliveira, em cinquenta e cinco anos de vida pública, passou trinta e dois no Senado. Teve assim noticiada sua morte pelo jornal Gazeta de Notícias: “Apagou-se o Sol!”. O seu epitáfio é: “Estremeceu a Justiça, viveu no Trabalho e não perdeu o Ideal”.