Na última segunda-feira, 14, mesmo dia em que a enfermeira Sandra Lindsay recebia em Nova York a dose da vacina Pfizer/Biontech contra a Covid-19, o governo brasileiro era intimado a esclarecer, em 48 horas, a previsão de início e de término da imunização no Plano Nacional de Vacinação contra a pandemia. A despeito da determinação do STF, o Ministério da Saúde seguiu durante a semana sua insana cruzada contra a vacina. Enquanto em diversos países as aplicações aconteciam em meio a alívio e comemorações, no Brasil ainda não sabemos quando seremos imunizados. “Para que essa ansiedade, essa angústia? Somos referência na América Latina e estamos trabalhando”, disse o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, no lançamento improvisado do plano, dois dias depois. Em uma cerimônia no Palácio do Planalto, a máscara ficou restrita a poucos convidados, entre eles o personagem Zé Gotinha, que parecia tão perdido no local quanto o próprio governo.

ÀS PRESSAS Depois de negar a importância da vacinação, Bolsonaro muda de estratégia e anuncia plano (Crédito:TonyWinston)

Composto por 94 páginas, o plano é um estelionato à esperança do brasileiro de ver o fim do genocídio causado pelo novo coronavírus. O programa é tão vazio quanto o próprio planejamento em saúde do governo. Prevê que a vacinação terá início cinco dias depois de o registro ou autorização das doses pela Anvisa ocorrer, assim como a entrega dos primeiros lotes. A questão é que não existe data para que a autorização ocorra, uma vez que nenhum fabricante pediu ainda o registro, e, com isso, não há previsão para o começo dos procedimentos. Enquanto o mundo avança contra o vírus, o Brasil segue de portas escancaradas para a pandemia. O governo flerta com a morte, mas não vê nada de problema nisso. “Não vejo nada de errado no que está acontecendo. Se tivesse visto, já teria corrigido”, afirmou o general Pazuello.

Coronavac é incluída

Embora já tenha recebido aval para uso emergencial de seu imunizante em outros países, a Pfizer, por exemplo, mantém apenas uma negociação preliminar para entregar 70 milhões de doses ao Brasil, sendo apenas 2 milhões para o primeiro trimestre de 2021. Já a Coronavac, produzida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, tinha sido rejeitada por Jair Bolsonaro por causa de sua disputa com o governador de São Paulo, João Doria. Agora, num cavalo de pau, o Ministério da Saúde afirmou que foi incluída. A lista cita ainda a vacina de Oxford, a da Pfizer, Bharat Biotech, Moderna e Janssen, além do consórcio da Covax Facility, da OMS. Mesmo forçado a recuar pela pressão dos governadores e da opinião pública, Bolsonaro manteve sua campanha antivacina.

“O ministro da Saúde é um desastre para o País e para o governo, além de comprometer a imagem do Exército”
Rodrigo Maia, presidente da Câmara (Crédito:Wallace Martins)

“Agir como cidadão é uma coisa. Como presidente, é outra. Eu não vou tomar a vacina. Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu e ponto final”, afirmou para uma multidão no Ceagesp-SP, em um evento promovido por um aliado que foi marcado pela aglomeração e ausência de máscaras. Aproveitou para subir o tom contra seu provável rival nas eleições de 2022: “Nenhum rato vai sucatear [a Ceagesp] para privatizar pros seus amigos”. Para atingir Doria, rasgou o compromisso do governo federal em desestatizar o entreposto. O governador lembrou que o próprio presidente o havia incluído no programa nacional de desestatização. Enquanto o Brasil espera, Doria promete começar a imunizar a população de São Paulo em 25 de janeiro. O restante da população está à mercê da insensatez do mandatário.

“O ministro da Saúde é um desastre para o País e para o governo, além de comprometer a imagem do Exército com sua incompetência”, crticou Rodrigo Maia. Segundo presidente da Câmara, o general Pazuello era elogiado por sua habilidade logística, mas “até agora não apresentou nada organizado para a a vacina, para nada”. Para o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, só a pressão popular seria capaz de acelerar o processo de imunização. “Nada no País foi conseguido sem luta”, diz. O conselho tenta, com apoio de parlamentares, manter fora da alçada sanitária a batalha política. Mas tem sido uma luta perdida. Já são mais de 184 mil óbitos. Desde que a pandemia teve início, as recomendações do CNS foram ignoradas pela pasta da Saúde, que atuou também contra a prevenção. Premido por perdas financeiras nos últimos anos, o SUS sobrecarregou ainda mais sua debilitada estrutura na pandemia, num cenário agravado pela crise econômica. Ainda não é possível visualizar como o SUS será usado concretamente no plano. Por isso, há dúvidas se os R$ 20 bilhões previstos em uma medida provisória serão suficientes. Quando compradas, as vacinas precisarão ser destinadas aos estados.

Medidas equivocadas

As medidas apresentadas pelo governo para a vacinação são parciais e equivocadas, segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). A entidade, assim como outras, deveria ter sido consultada na formulação do plano, mas isso não aconteceu. Mesmo assim, o nome da pesquisadora Ethel Maciel, do Departamento de Enfermagem e pós-doutora em Epidemiologia da UFES, foi incluído no relatório, para surpresa e indignação dela e de outros especialistas que não foram consultados. A Abrasco enviou uma carta ao STF criticando o suposto plano do Ministério. Além de falsificar um apoio inexistente em um projeto de vacinação debilitado, o presidente quer determinar que as pessoas, ao tomarem o imunizante, assinem um termo de consentimento. O pretexto é isentar a União de responsabilidade por eventuais efeitos colaterais. Na prática, é mais uma barreira para a vacinação em massa.

NEGACIONISMO Pazuello minimiza a crise: “Para que essa ansiedade? (Crédito:SAULO ANGELO)

“Isso tudo que está acontecendo é um horror. Esse termo de responsabilidade não tem nenhum sentido. Se a Anvisa está liberando o produto tem de garantir a eficácia”, diz Ethel. “Obviamente não temos todos os estudos, mas as agências [de outros países]estão liberando o uso emergencial. Temos de garantir a farmacovigilância.” Os especialistas defendem que, além da vacinação irrestrita seguindo critérios de prioridade, o SUS tenha estrutura para que a população saiba onde recorrer em caso de necessidade após tomar a vacina. Isso é o que eles denominam de farmacovigilância, e não simplesmente jogar a responsabilidade para a população, como defende Bolsonaro. “Não tem o menor sentido isso. Não se pode responsabilizar o paciente. O Estado não pode se eximir da sua responsabilidade. Tem de garantir onde a pessoa deve ir. O problema é que eles desmontaram um monte de coisas”, lamenta a especialista. Mesmo sem data nem regras para começar a vacinação, o Ministério da Saúde estima que 108 milhões de doses sejam necessárias para a vacinação prioritária de trabalhadores da saúde e idosos, entre outros. O número cobre apenas 51 milhões de brasileiros, menos de um quarto da população. Ao mesmo tempo, o plano reconhece a necessidade de que ao menos 70% da população seja imunizada, o que representa mais 148 milhões de pessoas. Ou seja, o programa é tão incoerente como o governo.