“Última Ceia” (1498), de Leonardo Da Vinci (1452-1519), é uma das pinturas mais importantes da história. Só rivaliza com sua outra obra-prima: a “Mona Lisa” (1503). A obra fica no refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie em Milão. Mas o que o visitante encontra hoje resulta de uma restauração que se estendeu de 1977 a 1999, quando foi reaberto. O que se vê hoje de “A Última Ceia” é 80% obra dos restauradores e apenas 20% de Leonardo. Quase não existe mais e, por isso, continua a encantar.

Em “Leonardo e A Última Ceia” (editora Record), o historiador canadense Ross King explica como o afresco foi pintado e por que Leonardo o converteu em uma mistura de espelho da vida e uma cornucópia de enigmas que até hoje intriga os estudiosos. King também tenta mostrar em que medida “A Última Ceia” é reveladora da personalidade e das receitas secretas de um artista que foi o primeiro a gozar da reputação de gênio ainda em vida.

Quando chegou a Milão, a convite do duque Ludovico Sforza, Leonardo tinha 42 anos e trazia consigo a fama de não entregar as encomendas. Era igualmente célebre pela beleza e a excentricidade. Segundo seus primeiros biógrafos, ostentava elegância, força e beleza, com cabelos loiros, cílios e barba longos. Desprezando as convencões, vestia-se com manto roxo e barrete cor-de-rosa. Aprendera a pintar no ateliê de Verrochio, de quem se tornou discípulo e amante — e foi preso por sodomia na Florença natal.

Sforza o chamou para construir armamentos e esculpir um cavalo de bronze de 8 metros de altura em sua homenagem. Mas as guerras de Milão com os vizinhos obrigaram-no a confiscar o bronze de Leonardo, e desviar sua atenção para outra encomenda, a do mural da Última Ceia para os frades dominicanos. Leonardo obedeceu, mas ficou contrariado porque não conhecia a técnica do afresco.

Para fomentar a rivalidade entre artistas, o mecenas fez que, no dia em que Leonardo e equipe iniciaram A Última Ceia, o muralista Giovanni Montorfano começasse a pintar uma Crucificação no lado oposto do refeitório.

“Os homens de gênio às vezes realizam
mais quando trabalham menos” Leonardo Da Vinci

Amado discípulo

Durante quatro anos, Leonardo pesquisou a Bíblia, pigmentos e técnicas, e buscou modelos reais. Foi assim que se retratou como São Tiago Menor e, ao que tudo indica, usou o amante, o adolescente Salai (demônio), como modelo do São João Batista hermafrodita, sentado à direita de Jesus. King nrefuta a teoria divulgada em 2003 no romance “O Código Da Vinci”, de Dan Brown, segundo a qual João seria Maria Madalena. Segundo King, Leonardo exaltou as bodas místicas entre Jesus e o “amado discípulo” João. “Essas excentricidades eram típicas de Leonardo”, diz King. “Ele tinha atração pelo macabro e pelo erotismo bizarro.” Em muitas obras, explorou a sexualidade ambígua de santos, virgens e anjos.

Sforza pressionava Leonardo, que respondia: “Os homens de gênio às vezes realizam mais quando trabalham menos”. Quando Montorfano concluiu o trabalho, Leonardo mal havia iniciado o seu. Terminou-o meses depois. Não demorou para Sforza ser deposto. Leonardo se mudou para a corte de Francisco I na França. Morreu aos 67 anos, de infarto.

Com o passar dos séculos, “A Última Ceia” sofreu com a fumaça e a gordura do refeitório, intempéries e até um bombardeio em 1945. Mas o mural se degradou sobretudo porque Leonardo não sabia pintar em paredes. Para suprir a falha, inventou um método de superposição de tintas que se revelou ineficiente. “O estilo era superlativo, mas a técnica, limitada”, diz King. A medíocre “Crucificação” de Montorfano, exímio afresquista, permanece até hoje em perfeito estado. A obra de Leonardo estava tão desfigurada que foi necessário levar de Londres a Milão uma cópia dela feita em 1520 por Giampietrino, hoje é considerada tão ou mais rara que a obra restaurada.

A lenta desaparição e ressurreição de “A Última Ceia” só fez aumentar o seu impacto, para muitos o símbolo da brevidade da beleza terrena. Acima de tudo, narra a história do esforço de criação de um artista que costumava dizer: “O que é belo nos homens desaparece, mas na arte, não”.