Pesquisadores em todo o mundo tentam compreender porque algumas pessoas são simplesmente imunes ao coronavírus ou têm um descomunal poder de defesa. Elas estão entre nós e decifrar esse enigma pode ser o caminho mais curto para encontrar a cura da Covid-19 ou torná-la inócua. Sabe-se já que um número expressivo de indivíduos passa ao largo da doença, embora sofra constantes bombardeios infecciosos no convívio diário com contaminados. Na semana passada, foi revelado o caso do escritor afro-americano John Hollis, de 54 anos. Hollis foi altamente exposto, mas tem anticorpos poderosos, capazes de aniquilar o coronavírus e impedir que chegue perto de suas células. Segundo o estudo de caso, desenvolvido na Universidade George Mason, nos EUA, se diluíssem os anticorpos de Hollis em uma parte para mil, eles ainda matariam 99% dos vírus. Seus recursos imunológicos podem, num futuro não muito distante, ser reproduzidos em laboratório e usados na produção de soro ou de uma nova geração de vacinas — além de permitir um melhor entendimento dos mecanismos da doença.

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Um dos objetivos do estudo é entender o que os genes de defesa fazem para impedir a ação do vírus ou torná-lo inócuo e imperceptível

No Brasil, os esforços para confirmar o fenômeno da super- resistência passam pela genética e visam a descobrir sua incidência na população. O Centro do Genoma Humano, do Instituto de Biociências da USP, desenvolve, desde junho, uma pesquisa com cem casais, nos quais um dos cônjuges pegou a doença, desenvolvendo sintomas, e o outro não teve nada — ou testou PCR positivo, mas não houve manifestações ou até negativando. Foi feito o sequenciamento genético das 200 pessoas do grupo, tanto dos vulneráveis quanto dos resistentes, e a interpretação dos dados está em andamento. Um dos objetivos é entender o que os genes de defesa fazem para impedir a ação do vírus ou, pelo menos, torná-la imperceptível. Também se pretende mostrar se há algum componente étnico na imunidade. “A primeira coisa importante que a gente não sabe é a frequência dessas pessoas super resistentes na população”, diz a bióloga e geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro do Genoma Humano. “Pode ser que um único gene defina a resistência ou pode ser um conjunto, no que se chama herança complexa.”

Genes de proteção

IMUNIDADE John Hollis foi exposto à Covid-19, mas tem anticorpos poderosos (Crédito:Divulgação)

Na mesma frente de pesquisa, que conta com o suporte da Fapesp e recebe verbas da JBS, o Centro do Genoma Humano estuda um grupo de 13 pessoas centenárias que não desenvolveram a doença ou tiveram sintomas muito leves. A mais velha é uma mulher de 114 anos. “Queremos saber o que torna esses centenários resistentes”, diz Mayana. “E identificar quais os genes de risco e os de proteção.” Nessa faixa etária, o índice de letalidade da Covid-19 está entre 15% e 20%, o que significa que um a cada cinco infectados morre. Além da idade, outra razão da alta letalidade é a existência de doenças pré-existentes, como hipertensão e diabetes. O estudo vai analisar a produção de anticorpos e descobrir se algum dos indivíduos testados têm uma genética especial de proteção. No laboratório, as células adultas desses pacientes, assim como do grupo de casais, serão reprogramadas para voltar ao estágio de células-tronco pluripotentes, capazes de se diferenciar em diferentes linhagens de células. Essas linhagens são expostas ao coronavírus e os cientistas verificam se estão sendo infectadas ou não.

TRANSPLANTE Castillejo recebeu medula com mutação rara e se curou do HIV (Crédito:Andrew Testa/The New York Times)

Indivíduos super resistentes a qualquer doença sempre despertam grande interesse científico pelas perspectivas que oferecem. No caso do HIV, os cientistas descobriram que os portadores de uma mutação genética rara, a delta-32, relacionada à produção de uma proteína específica no gene CCR5, torna o indivíduo naturalmente resistente ao vírus. A descoberta foi fundamental para o sucesso de terapias posteriores que curaram pelo menos três pessoas da doença. Ficaram conhecidos os casos do americano Timothy Brown e do venezuelano Adam Castillejo. Eles foram submetidos a transplantes de medulas óssea doadas por portadores da mutação delta-32 e se livraram do vírus. Esse caso demonstra que o segredo da imunidade pode estar num gene raro ou numa mutação, mas existe a possibilidade da causa da super resistência estar associada a um gene mais comum. Seja qual for a solução, a genética abre mais uma porta de esperança para que o coronavírus seja controlado.