Encontro histórico foi promovido por ISTOÉ na semana passada: um convicto e impoluto republicano e um igualmente ilustre e firme monarquista se reuniram e apertaram-se as mãos — até então eles não se conheciam pessoalmente. Quem são esses personagens? Por que concordaram em se encontrar? Qual o motivo? Pois bem, vamos à história…

"A máquina política está podre. E quem não está podre, se entrar nela, apodrece" - Dom João de Orleans e Bragança
PEDRO II No exílio, ele recusou dinheiro dos republicanos porque não estava “servindo aos brasileiros”.

O Brasil e suas crises políticas geradoras de ódio e intolerância fazem coisas que até Deus duvida, como, por exemplo, conciliar esses dois representantes de ideologias secularmente inconciliáveis. Repita-se: um, republicano; o outro, monarquista. A república foi proclamada no Brasil no dia 15 de novembro de 1889, há 127 anos portanto. Havia quem defendesse a data de 17, mas o jacobino major Benjamin Constant não cedia em seu princípio de que o domingo fora feito para os particulares prazeres da cama e da mesa, não para a lida da politicagem dos quartéis. A proclamação foi então antecipada, e numa sexta-feira o marechal Deodoro da Fonseca, embora não muito disposto ao gesto, apeou do trono o seu velho amigo dom Pedro II. Cindido numa profunda crise de ausência de diálogo, incompreensão e intolerância, o País viu Deodoro renunciar à presidência da República em dois anos, legando o seu lugar para o vice Floriano Peixoto, esse sim um republicano dos pés à cabeça e apelidado de “marechal de ferro”. É aí que entra o impensável. Seria considerada letra maluca de samba enredo aquela que dissesse que chegaria o dia no qual descendentes de Floriano Peixoto e de Pedro II dar-se-iam as mãos – mais factível do que isso poderia até ser, por exemplo, a conciliação dos Montecchios e Capuletos no drama shakespeariano “Romeu e Julieta”. Pois bem, o impensável dia chegou: na quarta-feira 13, ISTOÉ realizou o encontro do historiador Lincoln de Abreu Penna, 72 anos e bisneto de Floriano Peixoto, com dom João de Orleans e Bragança, 62 anos e trineto de dom Pedro II. E, pela primeira vez, um esteve diante do outro. No momento atual, em que estamos nós novamente divididos pelo anátema e a intolerância, eles estão dispostos a atuarem na pacificação do País e na costura do esgarçado tecido social. Com a presença de ISTOÉ, a reunião desenrolou-se no condomínio onde reside dom João, no Rio de Janeiro.

“A máquina política está podre. E quem não está podre, se entrar nela, apodrece” – Dom João de Orleans e Bragança

“Vi amigos se afastando apenas porque tenho uma posição política diferente. Isso não é democrático, isso é ser intolerante”, diz o republicano Penna. “Democracia é saber dialogar, respeitando as diferenças”. O monarquista dom João acrescenta, mirando com ar reflexivo o céu e o mar do Leblon que se alcançam com os olhos através do salão envidraçado de seu condomínio: “Estamos passando por uma das maiores crises da história, seja a do império ou a da república. Nunca tivemos uma decadência tão grande. E há forte intolerância”. Penna e João falam em “intolerância” no presente como se fossem as vozes de seus ancestrais a soprar-lhes a mente – e também a animá-los a se moverem, assim como Penna se moveu quando enviou uma carta a dom Pedro, com quem jamais trocara uma palavra, propondo que se unam no ideário comum de pacificar o Brasil. A missiva foi bem acolhida, lida, e repousa sobre um aparador. Lá atrás, nos tempos do bisavô Floriano, também houve grave intolerância em um Brasil fraturado, e exemplo marcante disso foi o rompimento entre o poeta Olavo Bilac e o escritor Raul Pompeia. Em dado instante, ambos se esqueceram da arte das palavras com as quais esgrimiam tão bem seus argumentos e partiram para o… safanão. Incompreensão houve também entre os que elegeram e os que abominavam a figura de Clodilde Du Vaux, amante do positivista Augusto Comte, como símbolo da república.

FLORIANO PEIXOTO Com a renúncia de Deodoro da Fonseca, ele assumiu um País cindido pela intolerância
FLORIANO PEIXOTO Com a renúncia de Deodoro da Fonseca, ele assumiu um País cindido pela intolerância

Voltando-se ainda mais no tempo chega-se à época de Pedro II, e também nela a intolerância se espalhou nos dias que antecederam a queda do ancien régime: a briga girava em torno da necessidade política do Baile da Ilha Fiscal ou se tal festa reunindo nobres, militares, monarquistas e republicanos, todos atracados em 900 quilos de camarão, não era mero exibicionismo perdulário do rei. É patente que hoje a situação está polarizada, nas ruas, na academia e no Planalto, e tanto Penna quanto João responsabilizam a classe política. “Os maus políticos acabam prejudicando a ação dos bons. Temos gente honrada que acaba sendo arrastada para a vala comum”, diz Penna. Dom João é mais enfático: “A máquina política está podre. E quem não está podre, quando entra na máquina, se torna podre também ou tem de se submeter aos que estão errados”. Penna e dom João jamais interrompem a fala, um do outro. Esse é o figurino da boa conversação. Assim que o monarquista terminou, Penna concordou com ele e somou: “A queda na reputação dos políticos é perigosa porque cria uma imagem negativa das instituições”. Na sequência, ele traçou um contraponto entre “civismo e chovinismo”, nos dias de hoje e no final do século 19: “O civismo, desde que represente a insatisfação popular e saiba canalizá-la para o bem comum, deve ser incentivado. Já o chovinismo é a exacerbação que leva à intolerância”. Como o Brasil tem uma porção cívica e outra chovinista, indaga-se onde se deu o pecado original na formação do caráter nacional. Onde o Brasil de hoje está no Brasil de ontem, e vice-versa?

Com a autoridade e a estirpe dos quem tem a correr nas veias o DNA da tradição, dom João e Penna respondem à essa questão e, para tanto, não poupam críticas às suas famílias e nem sonegam-lhes elogios. O trineto João lembra, por exemplo, que quando Pedro II foi deportado, os republicanos ofereceram-lhe dinheiro para que vivesse com conforto: “meu ancestral agradeceu por carta, dizendo que não podia receber dinheiro do Brasil se não estava servindo aos brasileiros” (se alguém lembrar das verbas e do avião da FAB que Dilma insiste em manter não é delírio não). Penna, por sua vez, não hesita em apontar a proclamação da república como um golpe – “uma parada militar”, segundo artigo da época assinado pelo jornalista Aristides Lobo. Foi proclamação sem povo. Outro golpe viria a ser tentado por aqueles que não queriam dar posse a Floriano quando Deodoro renunciou, pregando a convocação de nova eleição (incrível, de novo passado e presente são espelhos a se refletirem, e se alguém cotejar com a atual aposta do PT na confusão, está bem cotejado). E a saída, onde fica a saída? “Se nós, monarquistas e republicanos, nos pacificamos e mantivemos nossas convicções, por que não daria para ocorrer novamente a conciliação?”, indaga Penna. Na análise de ambos, isso é possível, desde que surja uma “atitude política que venha na contramão da onda de intolerância”. Mais: para o bem do povo e felicidade geral da nação (quem disse foi Pedro I), é “necessária uma reforma política com recall de deputados, é preciso repensar a democracia não apenas como uma questão de direitos mas, também, de práticas cidadãs e de convivência”.

“A proclamação da república foi um golpe. Careceu de base democrática” – Lincoln de Abreu Penna

O monarquista e o republicano, como se vê, convergem para o mesmo ponto: a pacificação. Caso ela não ocorra, voltaremos então à definição nada lisonjeira que o jornalista Eduardo Prado deu ao final da monarquia e ao início da república: “aquilo não é monarquia, nem militarismo, nem ditadura, nem república. O nome daquilo é carnaval”.