Nas prateleiras de dezenas de bibliotecas, livrarias e casas brasileiras existe uma senhora chamada Dona Sofia. Trata-se de uma professora aposentada que mora no alto de uma colina bucólica. Os vizinhos não sabem, mas a casa de Dona Sofia é diferente: tem poesias escritas nas paredes de todos os cômodos! Certo dia, ela se dá conta de que não há mais espaço para escrever e, então, decide criar cartões poéticos para distribuir seus poemas preferidos aos moradores da cidade.

A clássica história do autor pernambucano André Neves, narrada no livro ‘A Caligrafia de Dona Sofia’ (Editora Paulinas), foi inspirada em uma professora de pintura que ele teve no Recife – a artista plástica Badida -, com quem aprendeu a amar ainda mais poesia. Era, então, simplesmente uma memória que ele quis colocar em livro. Mas uma memória do que, na educação, chama-se mediação de leitura, prática que pode ocorrer de várias maneiras com o intuito de promover o encontro entre livro, leitura e leitor. Não à toa, Dona Sofia vem se tornando, nas escolas e entre especialistas, um símbolo da “mediadora ideal”, por se tratar de uma mulher com grande repertório de leitura e quer compartilhar o que ama ler.

Esta é a premissa do papel do mediador de leitura: gostar de ler e de contagiar o outro com a sua paixão por determinado livro. Mas como? Primeiro, entendendo que não há receitas prontas. Cada pessoa irá descobrir seu caminho leitor. “O professor que tem o objetivo de mediar, de apresentar uma leitura como projeto pedagógico, tem uma tarefa educativa, mesmo que seja a de formação literária. Então, é seu dever preparar a leitura, ver quais recursos são necessários para provocar o diálogo a partir daquele livro”, diz Maria José Nóbrega, assessora pedagógica de projetos sobre leitura em escolas de São Paulo. “Já em situação familiar, o pai ou a mãe não tem de preparar algo como se tivesse um fim pedagógico. A mediação tem de ser mais livre. Quanto mais espontânea, mais bacana é o encontro.”

Mesmo em um espaço profissional de leitura, como uma biblioteca pública, a mediação pode ser de formas muito diversas. Assim como as vitrines e os espaços atrativos (ou não) das livrarias, as bibliotecas já são mediação. Só que os profissionais dos equipamentos públicos podem ter missões mais complexas.

Nas bibliotecas dos CEUs em São Paulo, grande parte da população, especialmente jovens e adultos que nunca tiveram acesso ao livro, não se sente legitimada a entrar. “É primeiro um trabalho de convencer aquele leitor tardio de que ele pode, sim, gostar de ler. Tirar o livro deste altar inatingível que a sociedade instituiu e trazê-lo como um objeto cotidiano”, afirma Carlos Otelac, bibliotecário e contador de histórias do CEU São Mateus, na zona leste. Uma das primeiras ações que fazem com um usuário novo é uma espécie de entrevista, para entender os interesses e apresentar obras. Outra possibilidade para atrair o novo leitor é misturar linguagens, como o bibliotecário fez com ‘O Caso do Bolinho’, de Tatiana Belinky (Ed. Moderna), que tem uma música no enredo. Otelac e sua equipe criaram uma melodia para a canção. “Virou um show! Fizemos várias apresentações.”

Obstáculos. As dificuldades independem da classe social. A falta de acesso à leitura toca em outras de nossas fragilidades, como a falta de escuta. Colocar-se no lugar do outro é uma das premissas de quem pretende promover o encontro do livro com o leitor. A outra é sua própria bagagem leitora. “A mediação mais forte – independente das variáveis ambiente, cultura, número de pessoas envolvidas etc – é o quão leitor é esse mediador. Numa sociedade em que vivemos a ausência do tempo, a leitura muitas vezes fica ameaçada. O mediador pode conhecer técnicas e estratégias, mas o fundamental é ler. Simples assim”, diz o educador e pesquisador Giuliano Tierno, criador do curso de pós-graduação A Arte de Contar Histórias na Contemporaneidade e um dos idealizadores d’ A Casa Tombada – Lugar de Arte, Cultura e Educação, em Perdizes, em São Paulo. “Com a prática de dessacralização do livro, de transformá-lo em algo comum, que se pode pegar, montar castelo, pular página, tem de vir a figura de alguém com experiência leitora acumulada e que, na hora que está conversando com leitor, traz elementos para conquistá-lo.”

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

A mediação em si tem diversos caminhos a percorrer até que ela aconteça. A narração oral ou contação de histórias é das mais usadas. Mas os envolvidos têm um dilema: se narração oral de histórias é uma prática artística, seria justo o educador ou bibliotecário se sentir obrigado a fazê-la? E, pelo mesmo motivo, seria dever do contador de histórias a função pedagógica de mediar o livro? Para Tierno, há que se diferenciar as intenções das práticas e acolhê-las. “Oralidade e literatura são coisas muito diferentes. Há contadores que fazem o trabalho com o livro, e há aqueles que não estão interessados na obra, que querem contar a história. Acho que contador de história não é mediador de leitura. Ele pode contribuir para que o ouvinte vá atrás do livro mas, às vezes, ele é só um contador de história. E os dois são muito importantes.”

Mostra literária. Há cinco anos, o autor de Dona Sofia fez sua primeira “exposição literária”. Foi com o livro ‘Tom’ (Ed. Projeto), em que narra de forma poética a relação de um menino autista com o mundo. Com ‘Nuno e as Coisas Incríveis’ (Ed. Jujuba), de 2016, também surgiu a ideia de transformá-lo numa mostra visual. Ela nasceu na livraria NoveSete, especializada em literatura infantojuvenil, e agora percorre escolas. Assim que viu a mostra na livraria, a professora de Leitura Sílvia Casatle quis levá-la para o Colégio Santa Cruz. E usou a exposição como forma de mediação. “(Os alunos) ficaram íntimos do livro e da história. Cheguei a ouvir de um pai que a cada leitura que faziam em casa, algo novo aparecia. Uma coisa se ligou à outra.”

Mais do que ilustrador ou escritor, Neves se vê como um promotor de leitura. Em encontros com crianças, cita outros autores, lê diversos tipos de livros, fala sobre suas preferências, aponta caminhos. As exposições, no fim, são outra forma de fazer o que ele mais gosta: ler com o outro. “Não quero que as pessoas leiam melhor meu livro ilustrado para ler outros títulos meus ou outros livros ilustrados apenas. Quero que elas se desenvolvam e leiam romances, contos. Que sejam adultos leitores de vários tipos de livros.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias