15/02/2019 - 16:01
Instalações precárias, alimentação escassa, relatos de assédio sexual e falta de representatividade. Após a tragédia ocorrida no Centro de Treinamento do Flamengo, que resultou na morte de 10 jogadores e mais 3 feridos, todos da categoria de base do clube, problemas recorrentes dos times formadores brasileiros voltam a chamar a atenção. “No Flamengo, que é uma equipe hoje com orçamento de 700 milhões de reais e uma boa estrutura, aconteceu uma coisa dessas, imagina um clube menor do Nordeste ou do interior do Rio”, diz o presidente do Sindicato dos Atletas de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Saferj), Alfredo Sampaio. Ele acredita que o local em que os garotos estavam era adequado, mas classifica como uma falha o fato de haver apenas uma saída no local. “Pelo menos tinha uma estrutura. O problema são os outros clubes que tem por aí, que o atleta dorme debaixo da arquibancada, com alojamentos e alimentação precários”, acrescenta.
Até o momento, o que se sabe sobre o incêndio no alojamento da base do Flamengo é que a falha pode ter começado no sistema de ar-condicionado e que a estrutura do alojamento tinha chapas de aço com poliuretano, material extremamente inflamável, o mesmo responsável pelas mortes na boate Kiss, em 2013. Além disso, a prefeitura do Rio informou em nota ter notificado quase 30 vezes o clube por falta de alvará. O local em que os garotos dormiam tinha autorização apenas para ser estacionamento e não tinha Habite-se. O Ministério Público do Rio de Janeiro tem uma ação em andamento a respeito da infra-estrutura dos alojamentos do clube. Após vistoria no dia 12 de fevereiro, o Flamengo foi impedido pelo MP de receber crianças e adolescentes no local, com 26 meninos alocados.
A precariedade dos alojamentos e do tratamento dos jogadores da base é característica da maioria dos clubes, inclusive dos que jogam a série A do Campeonato Brasileiro. Até o incêndio no Flamengo, porém, pouco se falava no assunto. Como é de se esperar, os jovens jogadores temem reclamar e sofrer algum tipo de retaliação que atrapalhe seus sonhos. A falta de um canal em que se sintam seguros para fazer denúncias pode ter sido a motivação de garotos das categorias de base de todo o país que passaram a mandar mensagens para o ex-goleiro do Flamengo Getúlio Vargas Jr. Após a morte dos jogadores do Flamengo, o ex-jogador decidiu comprar um chip de celular e divulgar o número no Instagram para que garotos em condições precárias de instalação pudessem mandar fotos e contar suas histórias. Já são mais de 10 mil compartilhamentos relacionados à campanha de Getúlio, imagens recebidas de todo o Brasil. As imagens publicadas pelo ex-atleta mostram quarto lotados, instalações elétricas improvisadas, banheiros sujos e até sapos em refeitórios.
“Eu não quero ser nenhum revolucionário. Não vou fazer nenhuma denúncia formal. A intenção é justamente mostrar o que está acontecendo. O importante é que o Ministério Público investigue a situação”, diz o ex-goleiro, que comenta o medo dos garotos de fazer denúncias. “Não tem nem condição. Os meninos têm medo. Os jogadores não se manifestam, nem o profissional. Se estivesse no lugar deles não sei se faria isso também”, conta. O receio de perder a oportunidade de realizar um sonho no futebol mantém muitos calados. O MP do Ceará passou a investigar irregularidades nos vários times do estado, assim como acontece no Rio de Janeiro, onde o alojamento do time de juniores do Botafogo, no Rio, foi interditado. O MP de São Paulo também abriu uma investigação sobre a condição dos alojamentos da Portuguesa, do Corinthians, do Palmeiras e do São Paulo. O alojamento da base do Corinthians tem funcionado de maneira irregular.
Acostumados com pouco
O ex-jogador do Flamengo e hoje comentarista Roger Flores confessa que tem dificuldade de analisar as condições em que viveu na época de base, quando fez parte do Flamengo e do Fluminense. “Quando eu vivi nas concentrações e alojamentos, eu era um menino sonhador e para mim estava tudo espetacularmente bom. Porque eu tinha uma situação humilde. A gente não tinha noção do que era bom, do que era ruim”, conta. Roger diz ainda que passou por acomodações “bem simples”, mas as condições em que vivia fora dos CTs e o sonho de chegar à equipe profissional de um grande time o motivavam e faziam achar “tudo maravilhoso”. Ele conclui que a história e as condições de vida dos garotos que se iniciam nas bases, afetam o julgamento do que seria bom ou ruim em termos de estrutura: “Essas condições que não são adequadas, geralmente e, na maioria das vezes, são muito melhores do que os meninos têm em casa”.
Atualmente analista de business intelligence e desenvolvimento de negócios, Paulo Cesar jogou futebol dos 5 aos 22 anos e compôs a base de grandes times como o Corinthians e o Palmeiras. Enquanto esteve em São Paulo não utilizava os alojamentos, mas foi quando passou a integrar um time profissional da segunda divisão do Campeonato Carioca, o Aperibé, que as dificuldades apareceram. “Cheguei a emagrecer um quilo por semana. O feijão era triturado no liquidificador, com água para render mais. Mas o nosso time era muito unido. Tinha uns meninos que pescavam no rio lá perto e a gente dividia os peixes. A gente recebia também doações da vizinhança. A cidade é muito pequena e como a gente perdeu dois jogos por w.o., já que não tinha dinheiro para pagar a taxa do campo, todo mundo percebeu a dificuldade. Levavam frutas que tinham colhido. As senhorinhas, as tias, davam almoço de sábado para nós, faziam um lanche diferente para ajudar”, conta o ex- jogador enquanto lembra pouco a pouco as dificuldades que viveu.
Jogador da base da Portuguesa, ex-goleiro do Bragantino e com carreira em times de Portugal, Ale Montrimas, que hoje trabalha no Sindicato de Atletas de São Paulo, conta que desde as categorias de base conviveu com ambientes insalubres, de mal cheiro, má alimentação e situações de assédio sexual. Quando garoto, as poucas vezes que dormia no alojamento da Portuguesa são lembradas pelo cheiro, os lençóis sujos e a falta de água filtrada – essa última o acompanhou até o fim da carreira no Brasil: “água era sempre de torneira, às vezes tinha um gosto estranho, mas geladinha ficava boa”, diz. “Não era um lugar que eu gostaria que um filho meu estivesse”, conta. Hoje, ao visitar centros de treinamento e alojamentos de times do interior, ele diz encontrar situações tão precárias como as vividas por ele anos atrás em clubes afastados da capital. “Às vezes o alojamento é bom, mas não tem comida. Às vezes a alimentação é melhor, mas a estrutura do lugar não. Às vezes falta tudo”, conta. Algumas das situações mais marcantes na carreira do goleiro foram com instalações elétricas perigosas. Goteiras que pingavam diretamente do lustre, ventilador de teto que espalhava as gotas pelo quarto e um blackout que acabou em pequeno incêndio causado por uma vela que foi esquecida acesa por um dos garotos. Daquela vez, ninguém saiu ferido.
“Estamos falando de crianças, crianças indo para a adolescência. Eles estão perdendo etapas da vida deles porque estão sendo tratados como futuros ativos, futuros negócios. São garotos de 14 anos, em formação, com uma carga de trabalho igual uma equipe profissional”, critica Alfredo Sampaio. Mesmo com incentivo do clube para que os jogadores continuem estudando, como foi o caso de Paulo Cesar, que tinha que apresentar o boletim escolar no Corinthians, os treinos em dois períodos o faziam chegar à sala de aula muito cansado. “Eu sempre senti que eu trabalhava”, conta. Afinal, desde os 14 anos já somava dias com treinos pela manhã e à tarde. O salário, no entanto, era uma ajuda de custo. No Corinthians, apenas para os destaques, dos quais ele fazia parte. No Palmeiras, para todos os garotos, dado que a carga horária também era maior.
Assédio sexual
Não é novidade para os atletas falar em assédio sexual por parte de pessoas com autoridade nos clubes. Os atletas relatam piadas, bom humor e, no geral, um assunto velado quando se trata de ter conversas sérias. De ‘brincadeiras’ no vestiário que se fossem levadas à diretoria seriam tratadas com desdém, a propostas reais em troca de favores sexuais, as histórias são conhecidas por grande parte dos jogadores. É dado também, que para quem mora no CT, longe da família, a vulnerabilidade é pior. Em times do interior dos estados, as histórias mostram que uma pizza pode ser suficiente para atrair crianças e adolescentes a situações de abuso. Ale Montrimas conta que, em alguns dos times do interior por onde passou, a única forma de diversão dos garotos era aceitar o convite de homens mais velhos para ir a baladas. Se faltava comida e ‘mistura’ nos alojamentos, como ele relata, também não havia dinheiro para lazer. Já mais velho, Ale conseguia se desvencilhar das situações de abuso, mas diz ter sofrido assédio por 10 anos em sua carreira, além de perceber abusos de adolescentes mais vulneráveis com frequência.
A experiência também foi vivida por Paulo César, que ressalta a autoridade que os assediadores tinham nos clubes. “São cartas marcadas. Todo mundo sabe quem faz isso em cada time. Sabia de um deles em um clube que treinava. Fui para outro e ele estava lá. Não demorou para que começasse a vê-lo olhando os meninos no vestiário”, disse. “No meu caso, a pessoa jogou no ar, de uma forma que se eu ficasse bravo, ele mudaria de tom. Foi assim comigo, eu saquei na hora. Tenho uma família estruturada, amigos que me apoiam. E um moleque que vem de longe, que não tem nada a perder? A oportunidade dele pode ir para frente ou não, por um pedido de um cara”, relata Paulo.
Chama a atenção o fato de não haver nenhuma entidade que dê voz às crianças e adolescentes dessa categoria do esporte. O Saferj e a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro afirmam que não podem representá-los pois não se tratam de atletas profissionais. O sindicato, inclusive, não tem poder para fiscalizar as instalações e fazer denúncias, já que sua atuação é limitada aos atletas com contratos de trabalho. Não se sabe quantos jogadores estão nas categorias de base no Brasil. Somando a base com os times amadores, são 38.305 vínculos não profissionais de jogadores de futebol no país, de acordo com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Quanto aos profissionais contratados, são hoje 7.048 jogadores. “Você tem uma porrada de times formadores no Brasil e não tem a mínima ideia de como esses clubes recebem os jogadores”, diz Sampaio. Vale lembrar que o Certificado de Time Formador concedido pela CBF, em dia no caso do Flamengo, não garante necessariamente direitos aos garotos em formação, nem mesmo autoriza o funcionamento do CT, apenas permite que os times cobrem o passe dos jogadores quando eles são vendidos. Os clubes ganham muito com esses garotos, mas dão pouco em troca.