A esquerda vive horas de impotência. Ela perdeu o protagonismo para o governo porque ele se encarrega ao mesmo tempo da situação e da oposição. No clima de farsa, a esquerda permitiu a ascensão da liderança não de um político, mas de um ator: o pós-galã de telenovelas José de Abreu, de 71 anos. Parlamentares, youtubers e jornalistas militantes o festejam como seu maior influenciador digital.

No fim de fevereiro Abreu se autoproclamou pelo Twitter presidente do Brasil. Zombava do líder da oposição venezuelano Juan Guaidó, que se declarou presidente para enfrentar Nicolás Maduro. Em tom bufo, tuitou a “nomeação” do ministério fantasia. A posse do “presidente” José de Abreu poderia soar como piada em tempos normais, mas materializou-se, em 8 de março no aeroporto do Galeão, em evento convocado pela internet. Ao desembarcar de um tour pela Grécia, Abreu foi recebido por militantes, que gritavam “presidente do Brasil”. Até Lula se declarou seu “cabo eleitoral”.

Abreu passou a atuar como antípoda de Jair Bolsonaro via Twitter: tudo o que o presidente real tuitava, o falso retrucava. Seguiu-se uma cornucópia de besteiras. Quem mais se diverte com elas é Bolsonaro, que prefere tuitar a brincar de governar. Desafiar um presidente fake é o melhor dos mundos para um político especialista em manipular as notícias e a história. Só para contrariar, Abreu anunciou que vai praticar o “autoimpeachment” em 1º de abril. “Não aguento mais ser presidente”, declarou. A verdade é que ele vai se concentrar nas gravações de mais uma novela da Globo. Sem tempo livre, ameaça deixar a esquerda órfã. A esperança é de que se trata de mais um de seus trotes.

As traquinagens têm consequências. A mais grave é a regressão do discurso ativista. A política sempre foi um campo disputado pelos argumentos. No Brasil de alguns anos para cá, porém, a luta pelo terreno político passou se dar por ofensas, palavrões e sandices nas redes sociais. As pessoas vivem nelas tão intensamente que o espaço público concreto se fundiu com o digital em uma nova arena. Ali, opiniões e ideologias se engalfinham. Como resultado, as ideias encolheram até dar lugar às hashtags, à “lacração”, a resposta desaforada que visa a desmoralizar o oponente. Formaram-se enclaves de consenso que se combatem, isolados e protegidos.

Com isso, as palavras deixaram de representar enunciados lógicos. Hoje elas resultam de imantações de forças contrárias. Foi por causa delas que o centro democrático se dissolveu para dar espaço à radicalização de esquerda e ultradireita. A “guerra de narrativas” deu lugar às trocas de ofensas dignas da quinta série.

A infantilização do discurso político pela regressão ao tuíte fortaleceu a direita – que prefere a força à razão. Ao mesmo tempo, sacudiu a esquerda, que até então esbanjava retórica fundamentada em uma suposta melhor formação acadêmica. O “marxismo cultural” saiu de cena em nome da “minionização” dos conceitos. Como resultado, os debates dos dirigentes intelectuais e militantes esquerdistas em seus libelos contra o governo começaram a ser invadidos por termos da cultura pop – como “bolsominions” (termo inspirado no desenho “Meu malvado favorito”), Pateta, Lucky Skywalker e pato, que misturam-se à gíria adolescente.

Autoajuda e autoengano

Não é por menos que o público assiste perplexo à degeneração do discurso crítico de colunistas e youtubers, políticos e intelectuais de esquerda. O processo se intensificou desde a campanha presidencial de 2018. O tom de centro acadêmico se misturou à escatologia. Entre os seguidores da nova cartilha, figuram Fernando Haddad, Gleisi Lula Hoffmann, Lindbergh Farias, Manuela D’Ávila e o próprio Lula, entre muitos outros. Haddad distribuiu “ironias”, chamando adversários de Tonho da Lua, de uma novela, e “Bozo”, o velho palhaço. Gleisi evoca Mickey e Lindbergh Luke Skywalker como se os personagens da Disney integrassem falanges. Manuela acha que “lacra” porque cita um músico punk como influência juvenil. Da prisão, Lula emite notas de apoio a ficções políticas e adota um tom de autoajuda (ou autoengano) em cartas à nação.

Ainda que tardiamente, a oposição e os petistas se deram conta da infantilização. Muitos descobriram que, ao apoiar Abreu e outras tolices, caíram na armadilha do governo e das hordas bolsonaristas para fugir do debate das questões fundamentais. Elas serão debatidas pelo PT nas próximas semanas. O partido organiza fóruns sobre a atuação nas redes sociais para recobrar a combatividade. Para superar a letargia, a esquerda terá de desligar o modo Disney de militância e adotar a discussão de ideias com argumentos reais. Deve relembrar que somente a razão pode vencer a ignorância.

Colaborou Wilson Lima