VEREDITO Capitu e Bentinho, personagens de “Dom Casmurro”: para o autor, ela traiu (Crédito:Divulgação)

A obra de Machado de Assis é um oceano de ideias tão amplo que seria possível desaguá-lo em diverso mares. Há o Machado filósofo, certamente um dos mais afluentes; o jornalista, magnífico cronista de sua época, os meados do século 19. Sua obra é um deleite Erga Omnes, mas, você, caro advogado ou amante do Direito, terá o prazer de saboreá-la especificamente dentro do seu universo. O conhecimento jurídico do escritor, subtexto para romances, poemas e peças de teatro, além de artigos em que tratava do tema per se, foi a inspiração para o brilhante “Código de Machado de Assis”. Publicado pelo jornalista e advogado Miguel Matos, criador do portal jurídico “Migalhas”, o livro é o resultado de uma pesquisa minuciosa sobre a relação entre o Direito e a obra machadiana, uma visão original e didática, que não deixa de lado o charme literário do homenageado.

“Nossa tarefa, muito laboriosa e nada penosa, é investigar cada migalha do Direito em seus escritos” Miguel Matos, advogado e autor

O livro reproduz os códigos jurídicos, com textos divididos em capítulos e artigos. “Munido de lupa”, como define Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), presidente do TSE, e autor do prefácio, Matos localizou cada advogado, desembargador, rábula e juiz na obra de Machado, e explica o contexto em que aparecem. Barroso afirma que “o livro revela um Machado progressista”. Em 1877, por exemplo, já defendia o voto feminino — o que só veio a ser adotado no Brasil em 1932, mais de 50 anos depois. A apresentação é do ex-presidente José Sarney, membro da Academia Brasileira de Letras ­— instituição fundada pelo próprio Machado de Assis.

Matos inicia seu livro com um questionamento: “Haveria uma beca por baixo do fardão de imortal de Machado? Teria ele se formado em Direito? Possuiria notável saber jurídico?”. A verdade é que foi o maior dos autodidatas brasileiros. Não recebeu educação formal; poucos cursos superiores no Brasil de Dom Pedro II aceitariam a matrícula de um filho de mestres de obras e lavadeira. Manteve-se, no entanto, um leitor exemplar dos hábitos e relações humanas da sociedade, base conceitual que forja, dentro de suas características, a própria elaboração das leis. Machado, portanto, era um advogado sem sê-lo, assim como um juiz sem toga e um jurista regido apenas pelas leis do bom senso. Não é surpresa, diante disso, que a maioria de seus grandes personagens se constitui de advogados. Para não perder a ironia que o consagrou, Machado pontua: “quase todos, aliás, maus advogados”. A começar por Brás Cubas, talvez o maior entre seus gigantes. Para separá-lo da interesseira Marcela, aquela que o amou “durante quinze meses e onze contos de réis”, o pai o enviou para cursar Direito na Universidade de Coimbra: “Estudei muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel”, confessa o defundo-autor. Há ainda o impagável caso em “O Alienista”, quando o vereador Galvão foi preso pelo médico Simão Bacamarte no hospício da Casa Verde por ter feito “um gesto de moralidade”. Ao receber uma bela herança, “corrompeu os juízes e embaçou os outros herdeiros”, o que, então, lhe rendeu a liberdade. É a primeira notícia de corrupção no Judiciário, na literatura brasileira.

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Apesar do interessante conteúdo espalhado pelas 600 páginas, há um item que certamente atrairá maior atenção dos leitores: o veredito sobre “Dom Casmurro”, um dos capítulos mais polêmicos da cultura brasileira. Afinal, Capitu traiu Bentinho ou não? Pode esquecer, leitor, porque aqui não haverá spoiler; será preciso buscar o livro. Digo apenas que, munido de pistas espalhadas por outras obras — “A Mão e a Luva”, para citar apenas uma — o autor apresenta um bom raciocíncio para chegar em sua decisão. O argumento, claro, veio do próprio Machado.