A campanha pelo voto útil não é novidade na política brasileira. Na primeira eleição após a redemocratização, em 1989, Lula usou esse argumento para tirar Leonel Brizola do segundo turno, já que teria mais chances de derrotar Fernando Collor. Em 2018, no auge do antipetismo, foi Ciro Gomes quem citou as pesquisas que o apontavam como o único nome capaz de vencer Jair Bolsonaro para tentar esvaziar a candidatura de Fernando Haddad. Desta vez na dianteira, o PT aposta tudo nessa tese. Numa disputa polarizada e com a democracia sob ataque, Lula, ancorado em números, busca convencer o eleitorado a deixar de lado as preferências e convicções políticas e pessoais e entregar-lhe a vitória logo no primeiro turno para neutralizar a sanha golpista de Bolsonaro. Isso levanta a pergunta: é democrático pressionar o cidadão a uma escolha antecipada?

EM DESVANTAGEM Bolsonaro participa de motociata com apoiadores em Belém (PA), na quinta: agora a campanha aposta na divulgação de resultados econômicos (Crédito:Marx Vasconcelos )
CAMPANHA Apoiador de Ciro Gomes, Caetano Veloso participa de movimento pelo voto no primeiro turno em Lula (Crédito:Divulgação)

Ideal não é. Uma corrente importante de cientistas políticos, como Carlos Pereira (EBAPE-FGV), defende que as instituições têm se mostrado sólidas mesmo com o açodamento bolsonarista, portanto levantar o risco de retrocesso antidemocrático é na verdade um argumento falacioso. Além disso, a eleição em dois turnos existe exatamente para que o eleitor exprima sua preferência, sem aderir àquele que tem mais chances de chegar ao poder. Um segundo turno leva os candidatos que passaram na primeira fase a flexibilizarem suas propostas, atraindo novos eleitores, além de se comprometerem com outras forças políticas. Esse esforço de composição é ainda um antídoto para eventuais arroubos extremistas.

O caminho para a campanha do voto útil, porém, estava pavimentado há meses, antes mesmo dos pedidos explícitos, por conta da disputa de extremos que impregnou a sociedade com o sentimento do “nós contra eles” (expressão que sempre foi fomentada por Lula, aliás). O naufrágio da terceira via favoreceu esse desfecho. Os dois líderes da corrida eleitoral lutaram nos bastidores para desidratar outras candidaturas, cooptando presidenciáveis (como Lula fez caso de André Janones, do Avante) ou sabotando candidaturas (como Bolsonaro fez com João Doria, com a ajuda de seus aliados no PSDB). Diante desse cenário, o cidadão pode usar as urnas como protesto, com o único objetivo de deixar longe do poder o candidato que se coloca no lado oposto do seu espectro ideológico.

“FRENTE AMPLA” Lula reúne ex-presidenciáveis no dia 19 para mostrar que conseguiu reunir apoio diversificado para sua campanha: a novidade foi a adesão de Henrique Meirelles (dir.), ex-ministro de Michel Temer (Crédito:Ricardo Stuckert)

As rotas que levam ao voto útil variam de eleição para eleição. Em 2022, a responsabilidade, para especialistas, recai no colo de Bolsonaro. A postura criminosa na pandemia e os constantes ataques ao Legislativo e ao Judiciário, com a ameaça de uma ruptura institucional, deixaram o antipetismo em segundo plano e levaram lideranças políticas e cidadãos a se unirem em torno do nome de Lula, apontado por pesquisas como o mais competitivo. Na prática, o próprio presidente contribuiu para que o pleito seja visto como uma disputa entre a democracia e a barbárie, na qual ele representa a barbárie. Isso levou Marina Silva a abandonar as mágoas causadas pela milícia digital petista em 2014. Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central que criou o teto de gastos como ministro de Michel Temer, também declarou apoio ao petista. O jurista Miguel Reale Jr., que assinou o pedido de impeachment de Dilma Rousseff, acaba de declarar o voto em Lula no dia 2 para “impedir uma ação desesperada de Bolsonaro”.

Voto estratégico

Cientista políticos também acham que essa tendência é justificável diante das circunstâncias. “Essa não é uma eleição normal, ela envolve uma ameaça à democracia”, diz José Álvaro Moisés. Para ele, o voto útil, ou estratégico, “é uma ferramenta democrática legítima”. “As duas escolhas são legítimas, não se trata de contrapor uma à outra, elas são alternativas para o eleitor escolher.” Segundo ele, o mandatário percebeu que provavelmente será derrotado e vai contestar o resultado. “Está dizendo isso com todas as letras, o que é, em si, ameaça à democracia.” O mestre em Ciência Política pela UnB Carlos Augusto Mello Machado diz que não se trata somente um voto útil no sentido do menos pior. “É como se fosse um plebiscito entre quem quer democracia e quem não quer”, argumenta. “Não à toa, Lula conseguiu uma frente ampla mais diversa do que a fechada em 2002 com José Alencar.” O voto útil é uma ferramenta da política, faz parte do regime democrático, concorda Carolina Botelho, cientista política da UERJ e do Mackenzie. “Esta é a eleição mais importante da Nova República. A ideia do voto útil é reforçar valores sociais discutidos e pactuados na Constituição de 1988. Os últimos acontecimentos ligados a Bolsonaro têm incomodado todo mundo, não só os petistas.”

Bolsonaro já percebeu que essa estratégia ameaça definir a eleição no primeiro turno. Por isso, tenta moderar o discurso (como fez na ONU) e ampliou o uso de fotografias do Sete de Setembro, para assegurar que tem o respaldo da população e tentar envolver os eleitores na tese falsa de que os institutos de pesquisa fraudam números para favorecer Lula. Com a retórica, o capitão incentiva seus fiéis apoiadores a se manterem engajados na disputa e, de quebra, cria um “seguro” contra a derrota. O falatório é corroborado pelos seus ministros. “TSE, anote esses números que o Ipec está dando, que no dia dois de outubro a população vai cobrar o fechamento desse instituto”, disparou Fábio Faria, que comanda o Ministério das Comunicações, nas redes, quando a sondagem indicou, no dia 20, que Lula tinha 47% das intenções de voto ante 31% de Bolsonaro.

A mesma sondagem diz que 80% dos eleitores já estão decididos sobre o voto para presidente, e 19% ainda podem mudar de voto. Por isso, o PT resolveu acelerar a caça do voto útil entre os eleitores de Ciro Gomes e Simone Tebet, que aparecem estagnados no levantamento, com 7% e 5%, respectivamente. A distância entre Lula e Bolsonaro, que era de 15 pontos percentuais há uma semana e de 12 pontos há duas, segundo o Ipec, agora está em 16 pontos. É um dado dramático para o presidente, que tem rejeição de 50%. Lula pode levar no primeiro turno, já que soma 52% dos votos válidos. Pesquisa Quaest indicou que 33% dos eleitores de Ciro e 24% dos eleitores de Tebet poderiam mudar de voto “para Lula vencer no primeiro turno”.

No meio do fogo cruzado, candidatos de centro, que lutam para se manter no páreo como alternativas, criticam Lula pela ofensiva. Ciro Gomes acusou o PT de liderar um “fascismo de esquerda” e de tentar “aniquilar as alternativas”. Soraya Thronicke (União Brasil) classificou a estratégia como um “absurdo” e declarou que o petista tenta causar “medo naqueles que não gostam do Jair”. Simone Tebet alertou que a investida pode queimar pontes para alianças no futuro. Para o ex-candidato à Presidência Eduardo Jorge (PV), as campanhas dos dois principais candidatos atentam contra a democracia. Segundo ele, seus apoiadores miram, nas redes sociais, quem defende o voto em outros candidatos. “Basta olhar o meu Twitter. Vou votar na Simone Tebet e sou atacado pelos dois lados”, exemplifica. “Uma coisa é argumentar, tentar convencer. Outra coisa é constranger.” Apesar de ter conseguido o apoio de tucanos históricos, como Aloysio Nunes, Lula não foi bem-sucedido em obter o compromisso do senador José Serra, ainda que seus apoiadores tenham insinuado essa adesão. “Dizer que vou apoiar Lula, ainda mais pelo voto útil, é pura fake news. É PT sendo PT, que pensa que democracia vale só se for pra eles. Minha candidata é Simone”, disse Serra.

Contra o golpe

A grita geral, todavia, não abalou o PT ou os partidos coligados, que sonham em liquidar a fatura no dia dois. Ali, a tese primordial é a de que, caso Lula vença no primeiro turno, reduzirá a munição de Bolsonaro para contestar a confiabilidade das urnas eletrônicas, já que, nesta etapa, o processo eleitoral, além da corrida pelo Planalto, envolve a disputa pela Câmara, pelo Senado e por governos estaduais. “Uma vitória maiúscula de Lula é importante para dar maior legitimidade às eleições. Fora isso, o Brasil não ganha nada com mais quatro semanas de campanha de ódio e de violência política. O principal argumento em torno do voto útil é justamente a postura de Bolsonaro”, sustenta o presidente do PSOL, Juliano Medeiros.

A campanha do voto útil cresceu especialmente no meio digital. A proposta dos apoiadores de Lula é inundar as redes com vídeos de cantores, atores, influenciadores e políticos que já atuaram como críticos do petista. O movimento já começou. “Sinceramente, acho que, mesmo a gente adorando o Ciro [Gomes] e respeitando o que ele planeja, tem que ser Lula”, afirma Caetano Veloso, antigo eleitor do pedetista, numa das gravações. Apesar da ofensiva, o PT ainda é cauteloso. Não à toa, a campanha pelo voto útil não deve ganhar a televisão e o rádio — o discurso nesses meios, segundo dirigentes, soaria como desrespeito e poderia melindrar presidenciáveis que tendem a apoiar o petista. “Ele pede abertamente voto no primeiro turno em comícios, mas, na propaganda eleitoral, não vai se dirigir ao eleitor pedindo que ele deixe de votar nesse ou naquele candidato”, diz o deputado Paulo Teixeira. Ainda assim, a ideia será propagada em atos populares, como no dia 24, nos comícios previstos para ocorrer em São Paulo.

Estratégia do PT

Uma campanha para combater a abstenção está em stand-by. Enquanto uma ala da campanha petista entende que ela poderia assegurar a “gordura extra” que Lula precisa para vencer, outro setor avalia que o maior comparecimento seria benéfico, na verdade, para Bolsonaro. Entre divergências e limitações, o QG lulista espera ver resultados logo na largada da próxima semana, partindo pela próxima pesquisa Ipec, que será finalizada dia 26. O progresso de Lula no último levantamento do instituto não decorreu da tática do voto estratégico, mas do avanço dele sobre os eleitores que ainda declaravam que votariam nulo ou branco. A expectativa por um novo crescimento não é desarrazoada, já que, segundo especialistas, a escolha de quem adere ao voto útil costuma ficar para a última hora, porque repercute somente no segmento dos indecisos e dos não convictos. “A reta final é aquele momento em que mesmo quem não queria Lula ou Bolsonaro escolhe um lado para não desperdiçar o voto”, diz a pesquisadora Maria do Socorro Sousa Braga (UFSCar). “Precisamos considerar também fatores de curto impacto — são frases, às vezes, mal colocadas ou cortadas que afastam segmentos. Em debates e sabatinas, por exemplo, Bolsonaro já falhou com mulheres, e Lula, com o agro.”

Em termos gerais, especialistas consideram ser impossível prever o alcance da estratégia do voto útil. Lula, porém, já conseguiu fazer um grande rebuliço. O engajamento nas redes em torno do assunto registrou 30 vezes mais interação no Instagram do que há um mês, e 19 vezes mais no Facebook no mesmo período, segundo levantamento feito pela Novelo Data em parceria com Essa Tal Rede Social entre os dias 12 e 18 de setembro. No âmbito político, levou correligionários de presidenciáveis, como Ciro Gomes, a rifá-los. O ex-deputado Haroldo Ferreira, por exemplo, pediu afastamento da vice-presidência da Fundação Leonel Brizola para declarar apoio a Lula. Segundo ele, pesou não somente a estagnação do pedetista nas pesquisas, mas, sobretudo, os ácidos ataques dele a Lula, o que o teria colocado como “linha auxiliar do bolsonarismo”. “Essa não é a nossa prática política, mas de quem está no poder”, disse. Na semana passada, um manifesto de pedetistas fez diversas críticas ao estilo do candidato, como “seu vocabulário chulo nos vídeos e redes sociais”, e declarou voto em Lula.

“As campanhas dos dois principais candidatos constrangem.Uma coisa é argumentar pelo voto útil. Outra é constranger” Eduardo Jorge, ex-presidenciável do PV (Crédito:Divulgação)

Para evitar novas dissidências e a desidratação eleitoral, Ciro tem pregado nas redes o voto por convicção no primeiro turno. “O Brasil não aguenta mais essa divisão superficial onde mais do mesmo brigam e colocam a gente pra brigar”, anotou, nas redes. Simone Tebet tem uma estratégia distinta. A candidata do MDB ao Planalto não pretende repercutir a possibilidade do voto útil nas redes, muito menos na TV e no rádio. “É uma agenda do Lula. Não temos por que entrar nisso”, diz um estrategista da senadora. “Vamos focar no Centro-Sul e no Sudeste do País, apostar em boas participações em sabatinas e debates do SBT e da Globo e acelerar para passar Ciro”, finaliza.

Maior vítima potencial do voto útil, Bolsonaro tem de reverter a resistência de metade do eleitorado e conquistar novos votos ou recuperar ovelhas desgarradas para se manter no jogo. Além de fomentar o antipetismo, sua campanha prepara materiais mais focados nos resultados econômicos do governo, como o crescimento do PIB e a redução da inflação. A preocupação no QG, contudo, é sobre a efetividade da estratégia, quando nem sequer um megapacote social rendeu um grande percentual de votos ao presidente. Se, de fato, Lula conseguir o triunfo nas urnas ainda no primeiro turno, conquistará uma vitória atípica no meio eleitoral, já que, desde a redemocratização, somente Fernando Henrique Cardoso conseguiu o feito. E, pela façanha, o petista poderá agradecer ao seu melhor inimigo, o atual presidente.

Candidatos criticam o voto útil

Ciro Gomes

Divulgação

“Há um fascismo de esquerda liderado pelo PT. O que o Lula está querendo fazer é o mesmo que ele fez com a Marina Silva: asfixiar a todos que não têm reparo moral. Ele é um corrupto, e diz que só ele pode sobreviver diante de Bolsonaro, que é outro corrupto”

Simone Tebet

Divulgação

“Esta não pode ser uma eleição do voto útil. Lula, você anda falando de voto útil. Você está querendo enganar o povo mais uma vez? Se você, eleitor, acredita na mudança, o voto útil é aquele que traz esperança e afasta o medo. Inútil é escolher o menos pior”

Soraya Thronicke

Divulgação

“Votar útil é um absurdo. é mais uma forma de enganar a população. O primeiro turno existe justamente para que as pessoas possam escolher, e o Luiz está causando medo naqueles que não gostam do Jair. Isso é inadmissível”

Colaborou Gabriela Rölke