REI Na hora certa, o “boi voador” estava em Lagos para resgatar Pelé (Crédito:Domício Pinheiro)

Pelo menos uma vez na vida, Pelé, Edson Arantes do Nascimento, um dos homens mais famosos do mundo, conseguiu passar despercebido, imperceptível, driblar todos os olhares e não ser visto. Foi quando precisou fugir da Nigéria, em fevereiro de 1976, em meio a uma tentativa de golpe de Estado e ao som de metralhadoras, bombas e gritos de desespero. Na ocasião, era indispensável para Pelé manter o anonimato para se salvar e ele teve sucesso. Para tirá-lo com segurança do País, que vivia em ebulição constante e numa situação de violência que ameaçava diretamente o craque, montou-se uma operação secreta envolvendo o embaixador Geraldo Heráclito de Lima, a Cotia Trading, que fazia entregas quase diárias por avião de 36 toneladas de carne na capital, Lagos, e a Varig, responsável pelo transporte. Numa jogada de mestre, Pelé cruzou a cidade escondido no carro do embaixador, iludiu a polícia e a alfândega e embarcou clandestino com roupas de piloto, simulando ser membro da tripulação, num cargueiro Boeing 707 que voltava para o Brasil. Na viagem de sete horas entre a capital nigeriana e o Rio de Janeiro, sua sensação foi de alívio. Saíra ileso de um dos momentos mais arriscados que já viveu.

Quem conta detalhes dessa história ocorrida há exatos 45 anos é o economista Roberto Giannetti da Fonseca, diretor da Cotia Trading na ocasião e participante da operação para tirar Pelé do país. Em seu incrível livro, “Memórias de um trader”, lançado em 2002, no qual conta a história do comércio exterior brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, ele descreve os momentos decisivos da fuga de Lagos. Pelé estava na cidade participando de um tour de marketing promovido por um de seus patrocinadores, a Pepsi-Cola. Na época, vestia a camisa do New York Cosmos, clube onde pendurou as chuteiras. Jogou uma partida de exibição e administrou algumas clínicas de futebol para jovens no país. Era mais ou menos assíduo na Nigéria desde os tempos do Santos, quando fazia excursões pela África. Uma apresentação do time na cidade de Benin chegou a interromper a Guerra de Biafra, em 1967. O governador da região, o tenente coronel Samuel Ogbemudia, decretou feriado e um cessar-fogo no dia da partida. Nove anos depois, porém, a situação voltava a ficar conturbada e o presidente da junta militar que governava o país, Murtala Mohammed, era cruelmente assassinado, baleado dentro de seu carro.

Os revoltosos, pertencentes à etnia ibo e comandados pelo tenente-coronel Buka Suka Dimka, ocuparam a rádio nacional e espalharam a notícia da morte e do golpe. Pelé estava no Hotel Federal Palace, o mais luxuoso da capital, e foi pego de surpresa pela evolução dos acontecimentos.

Murtala Mohhamed era um herói nacional e contribuiu para o início da pacificação da Nigéria, imersa em uma permanente guerra civil desde sua independência da Inglaterra, em 1960. Quando esteve no Brasil na primeira metade da década de 1970, Murtala ficou maravilhado com Brasília e lançou o projeto de fundar uma cidade nos mesmos moldes para substituir Lagos, referência dos colonizadores britânicos, como centro administrativo. Posteriormente, a atual capital, Abuja, foi erguida no interior do país. Os primeiros passos para a criação da cidade ficaram por conta do tenente-general Olusegun Obasanjo, vice-presidente da junta, que atuou para debelar o golpe e assumiu o poder após a morte de Murtala. Obasanjo foi chefe de estado militar entre 1976 e 1979 e, posteriormente, entre 1999 e 2007, foi presidente da Nigéria. Nascido na aldeia de Ibogun-Olaogu, veio de uma família de agricultores do ramo owu, dos iorubas, mas gozava da total confiança dos haussas, grupo que assumiu o poder depois da guerra e ao qual pertencia Murtala.

Os conflitos na Nigéria envolviam basicamente três grandes etnias, os haussas, da região norte, majoritariamente muçulmanos, os iorubas, do sudoeste, que se dividem entre praticantes da religião tradicional, cristãos e muçulmanos e os ibos, no Sudeste, predominantemente cristãos. É no Sudeste que se localizam as grandes reservas de petróleo, razão da intensa disputa territorial que tomou o país depois da independência, acirrada por interesses europeus, principalmente ingleses, franceses e alemães. Foram os Ibos que estabeleceram a República do Biafra entre 1967 e 1970 envolvendo o país numa guerra que, segundo as estimativas mais sangrentas, teria matado até 2 milhões de pessoas. Agora os ibos voltavam para se vingar de haussas e iorubas assassinando Murtala.

“Consciente do risco, Pelé e seus assessores correram para fora do hotel e se mudaram para a Embaixada brasileira, situada no bairro de Ikoyi. O embaixador Heráclito era uma figura notável por sua ousadia, informalidade e empenho na promoção das exportações brasileiras”, escreve Giannetti. “Menos de 24 horas após a tentativa de golpe, já havia um plano para a fuga do Pelé: ele iria sair do país no avião da carne. Junto, seguiria também um importante empresário brasileiro, Eduardo Andrade (que se tornou presidente da Construtora Andrade Gutierrez)”. Devido ao petróleo, que jorrava justamente na região dos ibos, a Nigéria enriquecia rapidamente e, pela primeira vez, tinha dinheiro para se lançar em negócios internacionais, inclusive com o Brasil, que virou um parceiro importante, importar os produtos que precisava se inserir no capitalismo global. Com um território equivalente ao do estado da Bahia, sua população na época era de 65 milhões de pessoas. Hoje é o sétimo país mais populoso do mundo, com 200 milhões de habitantes. Naquele instante, a Nigéria vivia um momento de inserção no mercado de entretenimento e começava a atrair astros da música e dos esportes, além de investidores, que viam o lugar com simpatia – a África entrou na moda nos anos 1970 – e como uma excelente oportunidade de negócios por causa de seus petrodólares.

Não por coincidência, nos dias da tentativa de golpe, enquanto Pelé estava lá, acontecia em Lagos o primeiro torneio de tênis profissional na África Subsaariana, que oferecia US$ 60 mil em prêmios e reunia vários classificados entre os cem melhores tenistas do mundo. A maior estrela do campeonato era o americano Arthur Ashe, que havia conquistado o título de Wimbledon no ano anterior. Ashe também estava hospedado no Federal Palace e fez amizade com Pelé. Os dois conviveram nos dias que antecederam a crise e estavam acompanhando os acontecimentos no hotel quando Murtala foi morto. Os efeitos da tentativa de golpe atingiram Ashe em cheio.Um dia antes, no meio de um jogo da semifinal contra seu compatriota Jeff Borowiak, o astro estava prestes a sacar quando cinco homens, alguns com roupa militar, entraram na quadra e interromperam a partida. O tenista foi obrigado a deixar a quadra sob a mira de uma metralhadora. A situação era realmente tensa e todos temiam que atentados e batalhas campais eclodissem pelo país.

“Todo mundo que participava do torneio de tênis estava hospedado no Federal Palace. Houve toque de recolher, vistoria dos carros e surgiu o temor de que o hotel fosse alvo de ataques e que os famosos virassem reféns”, disse Giannetti para a ISTOÉ. Ashe acabou deixando a Nigéria três dias antes de Pelé em um avião da Força Aérea americana, que o resgatou, assim como a outros tenistas que participavam do torneio. Por não ser cidadão norte-americano, embora estivesse a serviço da Pepsi e jogasse no Cosmos, Pelé não conseguiu embarcar nesse voo, mesmo tentando com afinco. Já o holandês Tom Okker foi liberado. A partir desse momento começou a corrida da diplomacia e das empresas brasileiras para tirar o rei do futebol em segurança da Nigéria e o avião da Varig usado pela Cotia Trading foi a saída. “Em meio à crise, era o único avião que tinha autorização para pousar e decolar no aeroporto de Lagos”, lembra Giannetti. “Propusemos então que Pelé se disfarçasse de funcionário da Varig. No começo ele ficou meio reticente, mas aceitou a proposta”. Foi para o aeroporto escondido no banco de trás do carro do embaixador.

“Menos de 24 horas após a tentativa de golpe, já havia um plano de fuga para Pelé” Roberto Giannetti da Fonseca, economista (Crédito:Bruno Santos)

O 707 da Varig não estava ali por acaso. Um fabuloso contrato para fornecimento de carne resfriada firmado entre o governo da Nigéria e a Cotia Trading, com valor de US$ 30 milhões, por sorte, havia entrado em vigor duas semanas antes. Era o começo de uma longa e frutífera parceria entre os dois países que perdura até hoje. Foi um momento em que o Brasil tratava de diversificar sua pauta de exportações, vender outros produtos agrícolas, além de café e bens manufaturados, para avançar em novos mercados da América Latina, Ásia e África. O Brasil fornecia carnes e diversas mercadorias e recebia petróleo em troca. A carne que ia para a Nigéria era preparada diariamente, em três turnos, segundo os preceitos muçulmanos, e deixava o Brasil com pontualidade para uma viagem de sete horas. Na hora certa, o avião estava no aeroporto de Lagos. Quem conta como foram os últimos momentos de Pelé em solo nigeriano é Giannetti: “O embaixador foi dirigindo seu velho Mercedes com placa diplomática até o aeroporto internacional e, como sempre fazia, obteve permissão para entrar na pista e estacionar o carro ao lado do avião da Varig”, lembra. E prossegue: “Em seguida, Pelé e Eduardo Andrade só tiveram de subir as escadas fingindo fazer parte da tripulação, para saírem clandestinamente do país no meio do tumulto do golpe e do toque de recolher. Era um grande ponto a favor da nossa operação de ponte aérea entre o Brasil e a Nigéria, denominada pelos tripulantes da Varig de “boi voador””. O “boi voador” salvou Pelé.