Embora nunca tenha sido exposta ao grande público, o quadro “A Caipirinha” está provocando uma discórdia pública semelhante a que sua autora, Tarsila do Amaral, gerou na plateia durante a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, há quase cem anos. Na ocasião, alguns amaram e outros odiaram o trabalho da artista paulista. Agora que ela é uma unanimidade, a disputa é entre o mundo das artes e os tribunais. Em jogo, o destino da obra: em primeira instância, a Justiça determinou o leilão judicial da obra por considerar fraudulenta a venda do quadro de Salim Shahin ao seu filho Carlos pelo singelo valor de R$ 240 mil. A decisão se baseou no valor da transação, já que, segundo especialistas e a própria sobrinha da artista, também chamada Tarsila do Amaral, a quantia negociada é ultrajante para um objeto tão valioso. A venda por meio de “herança antecipada” teria sido uma manobra para evitar a apreensão do quadro.

ÍCONE Tarsila do Amaral: a mais conhecida representante do modernismo brasileiro (Crédito:Divulgação)

“Para efeito de comparação, seu quadro ‘A Lua’, foi vendido ao Museu de Arte Moderna de Nova York no ano passado por quase R$ 100 milhões”, afirma o leiloeiro James Lisboa, que já trabalhou com diversas obras da artista em 42 anos de carreira. Tarsila do Amaral, a sobrinha homônima, responsável por cuidar das obras da artista, tem dedicado a vida para popularizar a memória artística da tia-avó, que morreu quando ela tinha oito anos. “Lembro bem dela, uma mulher elegante e refinada. Tenho orgulho de compartilharmos o mesmo nome”, relembra.

Tarsilinha, como é conhecida, gostaria que o quadro fosse para um museu. “A exposição em que Tarsila participou com outros artistas no museu TATE Modern, em Londres, levou um milhão de pessoas ao local. A exposição “Tarsila Popular”, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), em 2019, foi vista por mais de 400 mil pessoas e ultrapassou até mesmo a do famoso impressionista francês Monet, um dos pintores mais populares da história. “Se for a leilão popular, ‘A Caipirinha’ pode chegar a valores exorbitantes”, afirma James Lisboa, citando o lance inicial de R$ 42,5 milhões. A família Schahin conseguiu, na segunda-feira, 6, um reconhecimento na Justiça de que não houve fraude. O advogado Adelmo da Silva Emerenciano, que representa Salim Schahin, critica a decisão. “Foi uma decisão emocional. Há documentos, fatos e dados que mostram com clareza que a possibilidade de fraude seria impossível”, afirma. Por enquanto, o leilão está de pé.

O processo

A família Schahin adquiriu o quadro há mais de 30 anos, antes da venda do célebre “Abaporu”, obra mais conhecida da artista e arrematada em 1995 pelo colecionador argentino Eduardo Constantini. Hoje, está exposta no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba). Tarsilinha afirma que esse leilão foi um divisor de águas na obra da tia. “Ninguém via valor da obra no Brasil. Precisou uma grande casa de leilões no exterior valorizá-la para verem como a arte no Brasil é boa e de qualidade”. A família Schahin, envolvida em uma acusação de recuperação judicial fraudulenta na operação Lava-Jato, concorda com essa tese. “Schahin comprou o quadro na época por um valor baixo porque não havia essa valorização da artista. Tanto que ele sempre declarou a obra em seu Imposto de Renda”, diz o advogado.

Ainda segundo Emerenciano, vender um quadro para o próprio filho em herança antecipada fazia sentido em 2012, antes do pedido de recuperação judicial da empresa de seu cliente ou com empréstimos ligados à Petrobrás. O advogado conta ainda que Salim Schahin estava com câncer no cérebro na época em que assinou o contrato de venda, dentro do hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, um dia antes de uma cirurgia que poderia ser fatal. “Ele teve um câncer. Já havia feito uma cirurgia anteriormente, com risco de morte. Depois, precisou fazer um novo procedimento cirúrgico, também de alto risco”, conta.

Segundo uma fonte ligada à família, o quadro acabou indo para a casa do filho. “Agora a decisão vai para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Estamos lutando em várias frentes”, explica o advogado. Já Schahin, o pai, diz não ter feito nada de errado. “A obra sempre me encantou porque representa a infância da Tarsila. Não houve fraude”. Ele, que usa tornozeleira eletrônica, aguarda a decisão em casa. Para Tarsilinha, “A Caipirinha” pertence à Humanidade. “Se eu pudesse escolher, esse quadro deveria estar disponível para todos.”