“Do jeito que vai, as Dez Medidas vão virar meia medida.” Faltava pouco para acabar a votação do projeto anticorrupção do Ministério Público Federal, no plenário da Câmara, quando o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS) proferiu essa ironia. Ele mal sabia que havia vaticinado quanto ao futuro da proposta abraçada por mais de dois milhões de brasileiros. Àquela altura, a desfiguração da proposta de iniciativa popular já havia sido sacramentada. Apenas uma das dez proposições fora mantida em sua integralidade após a votação que terminou na madrugada de 11 de novembro. Os deputados pouparam o tópico que pedia alteração da legislação prevista para o crime de corrupção. Segundo o texto-base, a pena deveria ser alterada para 4 até 12 anos de prisão. Caso o dinheiro desviado seja superior a R$ 8,8 milhões, a detenção passa à mínima de 12 anos e à máxima de 25.

As demais propostas foram suprimidas ou tiveram sua redação completamente deturpada. Ignorando o apelo popular pela aprovação integral do texto-base, o plenário votou pela rejeição de propostas que tentavam endurecer as punições para quem pratica qualquer modalidade de corrupção. Eles jogaram na lixeira a tipificação do crime de enriquecimento ilícito de funcionário público; suprimiram ainda o ponto que pedia maior dificuldade de prescrição dos crimes. Além disso, escantearam a sugestão de implantar o “delator do bem”. Que é a pessoa que ganharia uma recompensa por entregar crimes que tenha conhecimento, mesmo não tendo participado.

Em retaliação aos procuradores que encamparam a ação que mobilizou milhares de pessoas, os deputados incluíram no projeto uma emenda de própria autoria e que tem como alvo os operadores da lei: a possibilidade de punição de magistrados e integrantes do Ministério Público por crime de abuso de autoridade.

em vão Mobilização da população pelas assinaturas não surtiu efeito até agora
EM VÃO Mobilização da população pelas assinaturas
não surtiu efeito até agora

Desfiguração como essa que deturparam as Dez Medidas propostas sob a liderança do responsável pelos procuradores da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, contra a Corrupção, acaba por amedrontar setores da sociedade organizados e outras iniciativas populares de fazerem sugestão ao parlamento. Talvez por isso, o número de propostas de iniciativa popular ou da sociedade organizada é ínfimo. Levantamento feito pela reportagem da ISTOÉ revela um dado desalentador para a democracia: nos últimos 25 anos, a Câmara e o Senado receberam apenas nove pedidos oriundos das ruas. E não é somente isso que desmotiva ou desencoraja. O tempo de tramitação até se tornarem lei pode chegar a mais de uma década.

Burocracia que acometeu o simples Projeto de Lei 2710 de 1992. De autoria do Movimento Popular de Moradia, a proposta tinha como meta criar o Fundo de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia Popular. Mesmo sob a iniciativa de um setor organizado da sociedade, a matéria foi obrigada a “ganhar” um padrinho político. O ex-deputado federal Nilmário Miranda, que na época militava no PT, pegou tudo mastigado e apresentou o projeto como sendo de sua autoria. Mas nem assim o texto-base se livrou do tempo de espera. A proposição só se tornaria a lei 11.124 em 2005. Ou seja, 13 anos depois de entrar na Casa.

Desfiguração, como a ocorrida com as Dez Medidas, acaba por inibir setores da sociedade de fazerem sugestões ao Parlamento

Do total de projetos apresentados pela iniciativa popular, apenas quatro viraram lei. A Câmara é a Casa com a maior adesão aos projetos de autoria popular, com sete encaminhamentos, o que não é motivo de festejo. O Senado recebeu apenas dois. Assim como na Câmara, os projetos de iniciativa popular também não tramitam ali sem um “padrinho político”. A explicação é a de que, como as duas Casas não possuem um sistema de verificação de assinaturas dos abaixo-assinados, é preciso escolher um relator – deputado ou senador – que se familiarize com o assunto proposto, para então começar a tramitar em um dos parlamentos.

sem empenho? Rodrigo Maia disse que a Câmara não tinha como contar assinaturas
SEM EMPENHO Rodrigo Maia disse que a Câmara não tinha como contar assinaturas

EXIGÊNCIA DO “PADRINHO”
Foi assim que ocorreu com o PL 4850 que estabelece medidas contra a corrupção. Apesar de entrar com a chancela dos badalados procuradores da Lava Jato e dois milhões de assinaturas, o projeto entrou para as comissões permanentes sob a rubrica de dos deputados Antônio Carlos Mendes Thame (PV-SP), Fernando Francischini (SD-PR) e João Campo (PRB-GO).

De acordo com os responsáveis pelos dois setores na Câmara e no Senado, as propostas surgidas da sociedade ainda sofrem a exigência de tramitarem com a autoria de um parlamentar porque não há mecanismo para a checagem das assinaturas, o que legitimaria o pleito. Segundo um funcionário do setor da Câmara, houve um pedido para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) auxiliar o serviço de conferência dos dados apresentados nos abaixo-assinados. Mas o TSE disse que somente atenderia a solicitação se o ofício partisse da Mesa Diretora, o que não ocorreu ainda.

Ao lançar mão da proposta de iniciativa popular, alguns parlamentares fazem o que bem entendem com a matéria. As adaptações são sempre com o objetivo de protegê-los. Exemplo maior dessa manipulação indiscriminada foi o pacote de medidas anticorrupção. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal acabou com farra com o texto alheio. Em dezembro, o ministro Luiz Fux impediu que o Senado adotasse medida semelhante à da Câmara sobre o projeto do MPF e deferiu uma liminar determinando o retorno da matéria para a Câmara. Segundo fontes ouvidas pela ISTOÉ, o magistrado pede para que seja conferida as assinaturas e, assim, garantir que o PL não prescinda de um padrinho político. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia chegou a dizer que não tinha como conferir as assinaturas, mas depois recuou e determinou que fossem checadas. O projeto voltará a ser apreciado.