Escassez crescente de água em função do calor e da seca deve provocar insegurança alimentar, deslocamento de populações e instabilidade política, alertam especialistas. Problema já afeta cerca de 2 bilhões de pessoas.A Terra é formada por 70% de água, mas só 0,5% disso é própria para consumo e uso na agricultura e está ao nosso alcance. E esse recurso precioso está se tornando ainda mais escasso devido ao aumento na demanda por água e a um planeta cada vez mais aquecido e seco no contexto das mudanças climáticas.
Cerca de 2 bilhões de pessoas ao redor do mundo já vivem sem acesso regular a água potável fresca. E metade da população global enfrenta escassez de água numa parte do ano.
Da queda nos níveis de produtividade agrícola à insegurança alimentar, redução da capacidade energética e impacto do saneamento precário na saúde, o estresse hídrico custa caro.
O valor econômico de ecossistemas funcionais de água doce era estimado em cerca de 58 trilhões de dólares em 2023 (R$ 314 trilhões), segundo a ONG ambientalista WWF – o equivalente a cerca de 60% do Produto Interno Bruto (PIB) global.
"Não há água suficiente para todos"
O alto estresse hídrico em países áridos e castigados pela seca na África e no Oriente Médio devem provocar uma queda de 25% em suas economias nacionais dentro dos próximos 20 a 30 anos, afirma o economista Quentin Grafton, chefe do departamento de economia da água da Unesco e professor na Universidade Nacional da Austrália.
Isso significa que haverá menos dinheiro disponível para importações cruciais de alimentos, ou para infraestruturas importantes para aplacar a falta d'água, como represas e plantas de dessalinização.
Grafton diz que é preciso lidar urgentemente com os impactos do estresse hídrico sobre economias globais: "Esse é um momento decisivo. Teremos que nos adaptar de uma forma muito mais rápida."
Grafton aponta que essas regiões podem sofrer com a instabilidade política, inclusive revoluções, à medida que a falta d'água afetar as cadeias de suprimento de alimentos, a atividade econômica e o emprego nessas regiões.
Como consequência, afirma, poderemos ver o deslocamento e migração em massa de povos. E à medida em que pessoas atravessam o Mar Mediterrâneo em direção ao sul da Europa para fugir de regiões em processo cada vez mais avançado de desertificação, essa instabilidade também chegará ao Velho Continente.
E como implementar soluções também custa muito dinheiro, o problema é amplificado.
Ecossistemas de água doce diversos podem reduzir a duração e intensidade de secas, mas têm sido esgotados pelo progresso e a irrigação excessiva dos campos agrícolas. Reabilitá-los demandará esforços maciços de reabilitação, já que desde 1970 o mundo perdeu um terço de suas zonas úmidas, segundo a WWF.
A crise da água também deve desacelerar economias em desenvolvimento poderosas. Grafton cita que a Índia, por exemplo, não tem água o suficiente para manter as usinas de carvão que produzem a eletricidade que permitiu o rápido crescimento econômico do país e ajudou a melhorar seus índices de pobreza.
"A meta deles é um crescimento de 7%, mas isso é uma ilusão", afirma Grafton. O país tem 18% da população do mundo, mas só 4% da água doce. "Não há água suficiente para todos."
A população rural pobre da Índia é a que mais sofre com esse quadro de falta d'água. A exploração predatória de aquíferos é uma preocupação central à medida que o lençol freático recua. Possíveis soluções incluem programas para fortalecer os reservatórios locais de água com barragens de terra que retêm melhor as chuvas de monções antes da estação seca.
Água para agricultura é problema
O calor e a seca recordes que desaceleram rios e esvaziam lagos e reservatórios também afetaram o ciclo hidrológico – processo em que a água evapora e retorna à terra como chuva.
O resultado disso é o declínio permanente da umidade e da qualidade do solo, com impactos devastadores sobre a produção agrícola que sustenta economias na Ásia e na África.
Durante a seca severa de 2020-2023 no Chifre da África – e que se tornou cem vezes mais provável por causa da mudança climática –, produtores rurais perderam cerca de 13 milhões de animais, além de colheitas inteiras. Ao menos 20 milhões de pessoas sofreram com a falta aguda de alimentos e perderam seu sustento.
Enquanto isso, na África Subsaariana, 40 bilhões de horas são perdidas todos os anos com a coleta de água – tempo que poderia ser usado para trabalhar e obter renda, ou estudar –, segundo a The Water Project, ONG que atua para mitigar a crise hídrica na região.
Crise hídrica à espreita também na Europa
A escassez de água também aumenta na Europa, uma região que tem esquentado mais rápido que qualquer outro continente do planeta, com exceção da Antártica.
Depois de a Europa registrar seu ano mais quente em 2024, a Alemanha teve, neste ano, sua mais seca transição de inverno para primavera. A seca se estendeu por grande parte do continente, do Reino Unido à Europa Central, enquanto países no Mediterrâneo sofreram com o calor extremo, incêndios florestais e falta d'água.
Ao mesmo tempo, cada vez mais setores da indústria competem por recursos hídricos limitados, observa Sergiz Moroz, especialista em gerenciamento de água da rede Escritório Europeu do Meio Ambiente (EEB).
"O setor de TI de repente começou a vir até Bruxelas e dizer que nós precisamos de um monte de água de alta qualidade para todo o crescimento que vai acontecer", afirma Moroz. "Fazendeiros vêm e falam: 'Olha, não podemos plantar sem água'."
A União Europeia está lidando com o consumo significativo de água por data centers, que dependem de sistemas de resfriamento para evitar o superaquecimento e estão se expandindo rapidamente junto com sistemas de computação em nuvem e a inteligência artificial. A estratégia de resiliência de água da UE, que deve entrar em vigor em 2026, planeja impor limites no consumo de água às empresas de tecnologia.
Enquanto isso, na Inglaterra a mudança climática, o crescimento populacional e as pressões ambientais devem provocar uma falta d'água até 2055 equivalente a um terço do que é usado hoje diariamente no Reino Unido, segundo a agência ambiental britânica. O déficit deve ser maior na região sudoeste do país, que é mais densamente habitada.
"Os recursos hídricos do país estão sob pressão enorme e cada vez maior", afirma o chefe da agência ambiental britânica, Alan Lovell. Segundo ele, o déficit põe em risco o crescimento econômico e a produção de alimentos.
Acesso à água nos EUA também está mais difícil
Nos Estados Unidos, moradores com acesso limitado a água também estão sob pressão econômica. O número crescente de lares sem água e saneamento suficientes gastam em média 15,8 mil dólares a mais por ano com saúde do que outros domicílios (R$ 85,7 mil), e viram seus níveis de rendimento no trabalho e na escola caírem, segundo um estudo de 2022 da ONG DigDeep.
"À medida que a água se torna mais escassa, o número de pessoas sem acesso deve crescer por causa de pressões relacionadas a eventos climáticos", avisa George McGraw, fundador e diretor da DigDeep.
"O jeito mais fácil de proteger a economia dos EUA desses choques é universalizar o acesso à água", afirma McGraw à DW. Isso inclui investimentos em "sistemas de água inteligentes e sustentáveis, dentro e fora da rede", para fazer frente aos "obstáculos ao acesso" em sistemas de distribuição de água ultrapassados que não são resilientes ao clima.