Não foi por falta de aviso. Eram claros os sinais de que a escalada de preços dos combustíveis, reajustados nas bombas quase diariamente, acabariam inflamando os ânimos de quem transporta cargas pelo País. Na quarta-feira 16, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), que congrega boa parte dos sindicatos de caminhoneiros, havia levado ao governo federal um ofício pedindo o congelamento do preço do diesel e a abertura de negociações sobre a política de reajustes praticada pela Petrobras. Àquela altura, o valor pago pelo combustível acumulava alta de 55% desde julho de 2017, quando a estatal passou a repassar o custo dos derivados de petróleo de acordo com as oscilações do mercado internacional e da variação cambial ­— ambas em ascensão vertiginosa. A estratégia vinha ajudando a empresa a recuperar valor de mercado, com um desempenho financeiro invejável após anos de corrupção, incompetência e manipulação populista. A salvação da Petrobras era aplaudida pelo mercado e por analistas. Até que a conta dos combustíveis se tornou inviável. Uma reação orquestrada por transportadoras e protagonizada por caminhoneiros levou o País ao completo colapso em menos de 100 horas. Nem mesmo quem convocou a paralisação, inicialmente programada para durar apenas um dia, poderia imaginar que em tão pouco tempo o Brasil ficaria com um tenebroso aspecto venezuelano: faltam alimentos, remédios, a atividade industrial sucumbe à escassez de insumos — e o perverso efeito da falta de combustíveis e dos mais de 500 bloqueios em estradas produz o caos generalizado.

47,2 bilhões de reais é o quanto a petrobras perdeu em valor de mercado com a paralisação

Depois do colapso provocado pela paralisação, a Petrobras decidiu suspender a política de reajuste automático. O governo precisou ir além na tentativa de convencer os caminhoneiros a voltar ao trabalho. Além da extinção da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre o diesel, que representa uma redução de apenas R$ 0,05 no litro do combustível, o acordo com as lideranças grevistas firmado na noite da quinta-feira 24 obrigou o Planalto a oferecer um subsídio para o combustível até o final do ano. Em vez de reajustar os preços diariamente, a Petrobras fará ajustes mensais — e a diferença será coberta pelo governo. As perdas em arrecadação podem atingir R$ 5 bilhões até o final do ano, de acordo com a perspectiva otimista dos integrantes do governo que participaram das negociações. Há quem estime um efeito cascata que poderia elevar a conta a mais de R$ 13 bilhões. Para a Petrobras, que concordou em reduzir o preço do diesel em 10% por 15 dias, em caráter emergencial como forma de convencer os caminhoneiros a liberar as estradas, o prejuízo já está calculado: com as ações da estatal desvalorizadas em 15%, o valor de mercado da petroleira recuou R$ 47,2 bilhões. Como o acordo prevê que o preço do diesel fique congelado por 30 dias nas refinarias (ao valor de R$ 2,10, o mesmo de 5 de maio), as perdas podem ser ainda maiores. E nem mesmo o recuo do governo trouxe o País à normalidade. Como a proposta foi aceita por apenas oito das 11 entidades que representam os caminhoneiros, cerca de 700 mil motoristas pretendiam manter bloqueios nas estradas.

“Enquanto o presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), não entregar o projeto votado e assinado pelo presidente (Michel Temer), da minha parte não levanto o movimento”, afimou José da Fonseca Lopes, líder da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam). Diante da recusa de parte dos caminhoneiros em suspender a paralisação, na tarde da sexta-feira 25 o presidente Michel Temer convocou as Forças Armadas para desbloquear estradas. Em seu pronunciamento, Temer afirmou que os caminhões não poderão ficar nem nos acostamentos. A prioridade será garantir o abastecimento de termelétricas e de aeroportos. “Quem bloqueia estradas e age de maneira radical está prejudicando a população. Vamos garantir a livre circulação e o abastecimento”, afirmou. A falta de combustíveis obrigou pelo menos dez aeroportos a suspender as operações, entre eles o da capital federal. Segundo a Infraero, Recife, Ilhéus, Goiânia, Palmas, Maceió, Carajás (PA), São José dos Campos (SP) e Uberlândia (MG) operavam em situação crítica de abastecimento. O Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, um dos mais movimentados do País, conseguiu ser reabastecido por caminhões-tanque escoltados pela Polícia Militar. Centenas de voos foram cancelados e as empresas aéreas adotaram planos de contingência, além de oferecer isenção da taxa de remarcação de voos aos passageiros.

Combustão espontânea

A rápida adesão de motoristas de todo o País ao movimento levantou suspeitas de que a paralisação seria encabeçada de fato pelas transportadoras, o que configuraria “locaute” — nome dado a greves em que os empresários é que cruzam os braços para defender seus interesses econômicos. A prática é proibida por lei. “A explicação mais direta, óbvia e incompleta para o que está acontecendo é que o preço do diesel sofreu uma elevação muito acentuada. Quando falamos de transporte, falamos de motoristas autônomos que não têm uma margem de lucro para absorver essa variação, e isso estrangula a operação. Mas existem outros fatores”, diz Paulo Furquim de Azevedo, professor de Regulação do Insper. Segundo ele, depois de passar por uma das maiores recessões de nossa história, da qual estamos saindo, o poder de compra da população ficou reduzido a ponto de pressionar quem vende drasticamente suas margens. “Esse custo está caindo em cima do transporte, que não consegue repassá-lo. Os caminhoneiros viram que têm um poder muito grande de travar a economia rapidamente”, afirma. Foi o que se viu na semana passada. A categoria que fez o Brasil parar é formada por uma massa de trabalhadores autônomos (37% do total) e assalariados que ganham em média quatro salários mínimos. A atividade de transporte de cargas vem se tornando mais estratégica para a economia por vários motivos. Quanto melhor a gestão de empresa, menor seu estoque. É um sinal de eficiência, porque assim são reduzidos custos, mas aumenta-se a dependência de logística. A greve mostrou que dois dias são suficientes para comprometer as operações de quase todo o comércio brasileiro, sobretudo de itens perecíveis, e de boa parte da indústria.

13,5 bilhões de reais é a perda de receita com a retirada do PIS/Cofins do diesel

Acabou
O estoque durou até sexta-feira na maior parte dos postos do País. Até as bombas secarem de vez, consumidores enfrentaram horas nas filas para poder encher o tanque. Protesto contra os preços dos combustíveis ganhou adesão de empresas de ônibus, motoristas que usam aplicativos e até motoboys

 

O desabastecimento impactou toda a cadeia de suprimentos: os primeiros a sentir foram os atacadistas, depois o varejo, que passou a restringir o volume de vendas para o consumidor final. Com prateleiras vazias, redes de supermercados limitaram a compra para apenas cinco unidades de cada produto. No Ceagesp do Rio de Janeiro, 95% dos legumes vendidos já estavam em falta na quinta-feira 24. No Ceasa de Brasília, um saco de batatas, normalmente vendido a R$ 40, subiu para R$ 300. A caixa de tomates saltou de R$ 60 para R$ 200. “Quando há escassez, o movimento da população só agrava o problema. As pessoas correm para comprar algo que tem pouca oferta”, afirma Marcel Solimeo, economista e superintendente da Associação Comercial de São Paulo. Em Barra Mansa (RJ), cerca de 130 mil litros de leite estão sendo descartados por dia, um prejuízo diário de R$ 200 mil. Montadoras de automóveis suspenderam a produção por falta de peças. Frigoríficos sofreram duplamente: sem receber animais para abate e sem ter como escoar os produtos já manufaturados. As exportações também sofreram prejuízos, já que as cargas não chegam aos portos. Foram US$ 100 milhões em carnes e 320 mil toneladas de grãos que deixaram de ser enviados em apenas quatro dias de greve. “O prejuízo em relação a bens perecíveis é claro. Mas mesmo bens duráveis são afetados. Pode não ter um impacto no comércio, mas tem na indústria, que suspende sua operação por falta de peças”, afirma Solimeo.

4,9 bilhões de reais é o valor do subsídio que o governo dará ao diesel este ano

Racionamento
Acima, um galpão quase vazio do Ceagesp, em São Paulo, onde o preço dos hortifrutigranjeiros disparou. O desabastecimento obrigou supermercados a limitar as compras de alguns itens a cinco unidades por cliente. Indústria também interrompeu produção

A paralisação realçou o quanto o modelo de dependência do transporte rodoviário adotado pelo Brasil a partir da década de 1950 torna o País refém dos caminhoneiros. Na área da saúde, entidades que representam hospitais fizeram seguidos apelos para que os grevistas liberassem a passagem de medicamentos e oxigênio. “Não há serviço que não dependa do combustível. A situação é tão grave que a falta de abastecimento afetou a própria produção de combustível”, diz Luiz Vicente Figueira de Melo Filho, especialista em Mobilidade Urbana do Mackenzie. Nos transportes, a falta de combustível prejudicou a eficiência de linhas de ônibus e até ambulâncias. A Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), responsável por representar mais de 500 companhias no país, alertou sobre a redução das frotas e suspensão do serviço em diversas cidades.

No Rio de Janeiro apenas 50% do BRT entrou em operação. Na Grande Recife, só metade dos ônibus foi às ruas. A Prefeitura de São Paulo recorreu à Justiça para garantir o abastecimento. A SPtrans, responsável pela gestão do transporte público, afirmou que a frota seria reduzida em 40% fora dos horários de pico. Os Correios também suspenderam algumas modalidades de entrega e ampliaram o prazo de outras. Antes que os postos de combustíveis secassem completamente, o que era visível na manhã de sexta-feira em quase todo o País, donos de veículos particulares foram para as filas, nem sempre com sucesso. O preço do litro chegou a R$ 9,99 em Recife e no Distrito Federal, onde os donos de postos preferiram lucrar com uma prática considerada ilegal pelo Procon.

ACORDO Reunião em que o governo aprovou a volta dos subsídios para o diesel: preços serão congelados e reajustes passarão a ser mensais (Crédito:Divulgação)

Futuro incerto

Existem políticas sustentáveis de longo prazo? Ao repassar o aumento do preço do barril de petróleo e da variação cambial a Petrobras agiu seguindo práticas internacionais. A diferença entre o Brasil e outros mercados é que estamos muito próximos da autossuficiência em combustíveis, o que permite lidar com a questão de maneira menos ortodoxa. Evidentemente, é impossível ignorar que o preço subiu — e não foi pouco. Mas havia necessidade de reajustar em 55% para o consumidor final? “A Petrobras errou em transmitir toda a volatilidade do mercado internacional para o mercado interno. Os consumidores perdem a referência do preço justo”, diz Azevedo, do Insper. “Em um caso de emergência, algumas medidas compensatórias precisam ser oferecidas para manter a roda girando”. Para o superintendente da Associação Comercial de São Paulo, Marcel Solimeo, a negociação deveria ter sido feita antes de a greve começar. “Não adianta resolver um problema criando outro. A reoneração tem que ser discutida, porque foi feita de maneira descabida. Não é hora de aumentar encargos num momento em que o mercado está do jeito que está, no meio da recessão.”