Os portugueses apelidaram de “geringonça” a improvável coligação de governo entre os socialistas e mais três partidos de esquerda que, desde 2015, governa o país. A união das esquerdas parecia impossível em Portugal, assim como a obtenção de resultados econômicos positivos por grupos que sempre atacaram os dogmas liberais. Foi o que aconteceu. A coalizão conseguiu diminuir o endividamento público e mostrou uma disciplina fiscal que atendeu as metas rígidas do bloco europeu, além de exibir resultados muito positivos no combate à pandemia. Somando-se à bonança econômica, Portugal virou um exemplo de sucesso no combate à Covid. Agora, a engenharia política que permitiu essa performance pode ruir. No final de outubro, a “geringonça” deu sinais de colapso, quando o parlamento português rechaçou o Orçamento de 2022, proposto pelo primeiro-ministro António Costa, do Partido Socialista (PS). O presidente Marcelo Rebelo de Sousa (PSD), da oposição de centro-direita, pode dissolver o Parlamento e antecipar as eleições, que poderão ocorrer até o fim de janeiro. A dissolução é considerada inevitável porque o PS, abandonado por seus aliados, não tem mais a maioria parlamentar.

POPULARIDADE O presidente Rebelo de Sousa deve apostar em uma nova eleição parlamentar (Crédito:Vincent Kessler)

“A geringonça acaba por razões políticas internas. O Partido Comunista, o Bloco de Esquerda e os Verdes tiveram uma grande dificuldade em justificar aos seus eleitores que suas propostas, por vezes, não eram as mesmas do governo”, explica José Reis, cientista político e professor da Faculdade de Economia de Coimbra (Portugal). Reis observa que o PS pode até sair fortalecido das eleições de janeiro, ao atrair descontentes dos outros partidos da esquerda. Ao mesmo tempo, a centro-direita portuguesa está dividida. “Em dois meses, muita coisa pode mudar na política. Se as eleições fossem hoje, a centro-esquerda manteria a maioria na Assembleia”, diz Reis. Para ele, existem cenários “complexos” pela frente. “Não podemos dizer que a geringonça chegou ao fim. Ela passa por uma crise forte.” O presidente, ao antecipar o pleito, dará tempo ao PSD para “arrumar a casa” antes do voto.

Sabotagem interna

O cientista político Márcio Coimbra, da Faculdade Mackenzie em Brasília, avalia que o presidente português adota uma estratégia arriscada ao apostar na própria popularidade. A convenção do seu partido está marcada para 4 de dezembro, mas pode ser suspensa. “Ele tentará fortalecer o partido para as eleições, pois acha que o PSD tem chance de vencer”, comenta. Segundo ele, a “geringonça” foi sabotada pela própria esquerda. “Os comunistas e outros queriam mais gastos sociais, o que estouraria as metas fiscais estabelecidas pela Comissão Europeia, quando Portugal assinou o acordo com a troika na década passada”, lembra. O PS, que governa desde 2015, respeitou escrupulosamente o acordo europeu. Esse foi o segundo governo mais longevo desde a redemocratização, em 1974. Aníbal Cavaco Silva governou por dez anos como primeiro-ministro, entre 1985 e 1995. Ele era do PSD, enquanto o presidente na época foi Mário Soares, do PS.

“A direita está muito fragmentada em Portugal, o cenário mais provável é de uma nova vitória dos socialistas” José Reis, cientista político

Na hipótese de a centro-direita voltar ao poder, Portugal estará caminhando na direção contrária à de vários países do continente. Na Alemanha e nos países nórdicos, a social-democracia está em ascensão depois de vários anos de baixa, fazendo a esquerda retomar um protagonismo que havia perdido no continente. Além de enfrentar com sucesso a pandemia, o governo da “geringonça” é bem avaliado na economia. Ao contrário de Grécia e Itália, que ensaiaram uma rebelião nos últimos anos contra a disciplina fiscal exigida pela Alemanha e outros países, o país se manteve fiel às normas do bloco europeu, e foi beneficiado com isso. Portugal começou a receber um pacote de 16 bilhões de euros (R$ 105,2 bilhões) da União Europeia, dinheiro que o governo usará para tornar o país menos dependente do turismo, muito atingido pela crise da Covid. “É importante reduzir essa dependência”, diz Reis. Segundo ele, o governo já iniciou projetos de recuperação econômica neste ano, com o foco na modernização dos serviços públicos e na habitação. Por causa da emergência sanitária e da suspensão do turismo, a economia recuou 7,6% em 2020, mas em 2021 o crescimento deve ser de 4,8%, e a projeção do Banco de Portugal para 2022 é de outra expansão de 5,6%, o que colocaria a nação em uma posição superior à que se encontrava antes da crise. Em meio a esse cenário de recuperação, os portugueses podem iniciar 2022 indo às urnas. Resta saber se o novo arranjo político vai garantir a perpetuação da bonança com a qual o país se acostumou.